A Segurança Social nos Programas Eleitorais

Artigo de Eduarda Ribeiro, Isabel Roque de Oliveira, Margarida Chagas Lopes.


O Grupo Economia e Sociedade (GES) tem vindo a reflectir sobre a Segurança Social, enquanto direito fundamental de cidadania, pilar do Estado Social e garante da coesão social. Como resultado desta reflexão, o GES divulgou uma Tomada de posição, em Maio do ano corrente, denominada “Reforçar a Segurança Social: uma necessidade política e uma exigência ética” aqui. A análise dos programas eleitorais nas matérias relacionadas com a Segurança Social tomou como base aquela Tomada de posição, o que permitiu retomar quase integralmente os princípios e objectivos defendidos naquele texto.

1. O direito à Segurança Social

Entre as funções que cabe ao Estado assegurar nos termos da Constituição da República Portuguesa conta-se a de “Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e a modernização das estruturas económicas e sociais” ((artº 9º d)).

O direito à segurança social e à solidariedade encontra-se também inscrito na Lei fundamental, que estabelece a competência do Estado neste domínio, bem como em diplomas legais que, ao longo dos anos, têm vindo a definir os termos em que a mesma deve ser exercida.

Bem sabemos como se revelaram importantes, sobretudo nos últimos anos, estas balizas jurídicas, sem as quais o argumento da necessidade de combate à crise teria servido para impor um interregno na garantia dos direitos constitucionais.

Acresce que, sendo o direito à segurança social um direito fundado na dignidade da pessoa humana, a sua realização e promoção constitui um imperativo ético (e não apenas legal) a defender em todas as circunstâncias, sobretudo quando se fazem sentir os efeitos das crises sobre as condições de vida das pessoas.

Lamentavelmente, não tem sido este o entendimento do poder político, que tem optado por privilegiar os interesses dos credores externos, ou seja, estabeleceu uma hierarquia de direitos não validada democraticamente nem eticamente defensável, onde o direito à segurança social foi remetido para os níveis mais baixos.

De facto, em consequência de sucessivos cortes do Orçamento de Estado, foi prejudicado o acesso e a qualidade dos serviços públicos de Educação e de Saúde, ao mesmo tempo que se limitaram as prestações da Protecção Social do regime não contributivo, precisamente quando as condições de vida das pessoas se agravaram de forma severa, como o atestam as estatísticas nacionais. Importa esclarecer sobre alguns equívocos relacionados com a pretensa generosidade do nosso sistema de prestações sociais. A invocação dessa generosidade tem sido por vezes utilizada para, de alguma maneira, desculpar e relativizar os cortes verificados nas prestações sociais. Acontece porém que, em Portugal, não só a parte representada pelas despesas com a Segurança Social no PIB é inferior à média dos países da União Europeia, como a capitação das prestações sociais, mesmo quando medidas em paridades de poder de compra, atinge valores substancialmente inferiores à média europeia.

Deve ainda ser referido que a redução das pensões de reforma do regime contributivo e o tratamento fiscal a que foram sujeitas – medidas estas que só não foram mais longe por oposição do Tribunal Constitucional – penalizaram uma proporção elevada da população que se incluía na classe média e abriram um precedente grave no contrato de confiança celebrado com o Estado, com impacto futuro ainda difícil de prever.

As políticas de austeridade, e o consequente retrocesso dos sistemas públicos de protecção social, traduziram-se não somente num aumento da população em situação de pobreza mas também no acentuar das condições de precariedade económica e social dessa mesma população.
O aumento da pobreza e da precariedade social foi igualmente acompanhado pelo acentuar das desigualdades na distribuição dos rendimentos.

Para além do que são os efeitos imediatos de tais políticas no bem-estar das pessoas, é claro que elas consubstanciam um retrocesso civilizacional, na medida em que, progressivamente, se vai diluindo a consciência dos direitos sociais e das obrigações do Estado Social, substituída por uma limitada visão assistencialista.

É tempo de afirmar que o modelo de sociedade que queremos construir passa pela defesa dos direitos sociais como obrigação não delegável do Estado, pelo que é incompatível com a noção de que tais direitos possam ser tomados, em qualquer circunstância, seja ela de crise, como a variável de ajustamento.

2.Algumas questões centrais da Segurança Social

Na abordagem aos Programas Eleitorais optou-se por não analisar todas as medidas de Segurança Social, mas tão só chamar a atenção para as propostas relacionadas com algumas das questões que se consideraram como mais importantes e que porventura vão influenciar a condução de uma futura reforma do sistema.

2.1.Sustentabilidade

Qualquer modelo de Estado Social e, em particular, qualquer sistema de Segurança Social é susceptível de ser melhorado e o português não será excepção. O que importa é que os princípios de universalidade, solidariedade e equidade social, que estão na base da sua criação, sejam sempre salvaguardados. Dito de outra forma: as reformas da segurança social devem ser ditadas pelo objectivo de acrescentar o bem- estar social, promovendo uma justa partilha de riscos entre grupos sociais e entre gerações.

Certamente que uma reforma da segurança social tem que dar atenção à sua sustentabilidade financeira, quer incida sobre a vertente não contributiva, destinada à protecção social de cidadania, suportada pelo OGE, quer sobre o sistema previdencial, assente no princípio de solidariedade de base profissional, alimentado pelas contribuições de trabalhadores e empresas.
Mas constitui erro grave, no esboço e na implementação das reformas da Segurança Social, minimizar a preocupação com a sua sustentabilidade social e política, por ausência ou insuficiência de um debate alargado capaz de estabelecer um compromisso democrático de longo alcance.

Como é evidente, não é sob a coacção de argumentos de ordem financeira – tantas vezes tendenciosos ou pouco transparentes – e do dogma da inevitabilidade de redução de custos, que devem ser promovidas reformas em sector tão importante. Assim o exige o respeito pela legalidade constitucional e o sentido de justiça perante os que mais seriamente têm sofrido o impacto das políticas de austeridade.

Tal não prejudica que algumas medidas, de índole organizativa ou institucional, possam (e devam) ser concretizadas, com resultados em termos de eficiência dos recursos da segurança social e, inclusivamente, na facilitação do acesso a prestações sociais. Uma questão que tende a ser ignorada, quando se argumenta com a insuficiência dos recursos financeiros, é a necessidade de inventariar as razões que a explicam para sobre elas actuar eficazmente.
Está em causa uma questão de método, mas, acima de tudo, a inaceitável redução de apoios sociais que o Estado deve prestar a grupos particularmente vulneráveis e que têm vindo a ser particularmente afectados pelas políticas de austeridade.

A preocupação com a sustentabilidade do sistema previdencial da segurança social levaria a considerar prioritárias as questões que, a montante do sistema de pensões, estão a contribuir para a redução progressiva dos seus recursos financeiros: o já denominado “inverno demográfico, ”o peso crescente do desemprego de longa duração, a emigração e o encurtamento dos períodos contributivos.

Em vez de sucessivas reformas paramétricas do sistema de pensões que, a prosseguirem, reduzem os benefícios garantidos e aumentam a desconfiança de quem efectua descontos sobre os seus salários, bem melhor seria a aposta na promoção do crescimento e do emprego e na regulação do mercado de trabalho que garantisse a  estabilidade do vínculo laboral e um salário digno.

Consideramos que um sistema de pensões inspirado no ideal de solidariedade, como é o sistema de repartição (as contribuições dos que hoje trabalham pagam as pensões dos reformados), é o que se apresenta com maior potencialidade na construção de uma sociedade de bem-estar. Importa pois defendê-lo contra modelos de capitalização privada, inspirados na ideologia neo-liberal ou contra a tendência para transpor modelos de outros países sem atender às profundas diferenças de contexto económico e social.

Com a finalidade de salvaguardar a sustentabilidade da Segurança Social, a Coligação Portugal à Frente defende o plafonamento das contribuições para as gerações mais jovens, ou seja, que a partir de um tecto salarial (que não foi definido) os descontos dos trabalhadores que entram no mercado de trabalho sejam canalizados para capitalização em fundos privados ou mutualistas, o que para além de contribuir para uma redução das receitas actuais da Segurança Social, só a muito longo prazo poderia fazer baixar as despesas, numa percentagem mínima, dado o fraco peso das pensões muito elevadas no total das pensões. A Coligação advoga ainda uma aposta efectiva no desenvolvimento dos planos complementares de reforma. Estas propostas traduzir-se-iam numa mudança substancial do modelo vigente, já que põe em causa o princípio da solidariedade intergeracional, ou seja, aquele em que cada geração sustenta a que a antecede, ficando com o direito de ser sustentada pela seguinte

O Programa do PS defende o reforço da sustentabilidade através da tomada em consideração da idade da reforma e da esperança de vida, da evolução demográfica, de mudanças no mercado laboral. O PS propõe ainda uma redução temporária da TSU dos trabalhadores, como forma de permitir o aumento dos rendimentos das famílias e, consequentemente, a dinamização da procura e o crescimento do emprego. Considera que se devem reforçar os instrumentos de apoio à complementaridade com instrumentos individuais de poupança.

Os pressupostos que serviram para realizar os cálculos apresentados para suportar estas propostas não parecem contudo totalmente satisfatórios. De facto, trata-se de medidas que não estão isentas de riscos, não só do lado da recuperação das receitas como dos efeitos previstos sobre o emprego. Há ainda o risco de se fazer enfraquecer a ligação das pensões à TSU.

O programa da CDU recusa a indexação das pensões a factores demográficos e económicos às pensões; é contra o plafonamento; pretende reforçar o financiamento do sistema previdencial e combater a redução da TSU; e é a favor das transferências do OE para o regime não contributivo, combatendo uma visão assistencialista e caritativa. Sugere ainda que se acabe com a utilização das receitas da Segurança Social, resultantes das contribuições dos trabalhadores e das empresas, como instrumento de política económica, canalizando-as para garantir uma melhor protecção social aos trabalhadores, aos reformados e pensionistas.

O Livre – Tempo de Avançar pretende contrariar a tomada em consideração do adiamento da reforma e do factor de sustentabilidade no cálculo das pensões. Defende uma segurança social pública ampliada e modernizada. Pretende reforçar a qualidade e a eficiência dos seus serviços, assegurar a sustentabilidade e a estabilidade do sistema, respeitando as normas constitucionais, preservando o regime previdencial de repartição com benefício definido e assegurando um sistema unificado, descentralizado e participado assente nos princípios da universalidade e da solidariedade.

2.2.Diversificação e alargamento das fontes de financiamento

Os Programas não estarão entretanto contra uma diversificação e alargamento das fontes de financiamento da Segurança Social, embora mantendo como suporte essencial as contribuições de regime previdencial, como forma de reforçar a sua sustentabilidade. Nem todos são claros a este respeito, nem apontam para medidas concretas.

A CDU sugere a criação de uma contribuição sobre as empresas com elevado Valor Acrescentado Líquido por trabalhador e a afectação de 0,25% do imposto a criar sobre as transacções financeiras ao reforço do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS). Pretende ainda que se promova uma gestão pública cuidada e criteriosa do FEFSS, garantindo a transferência de uma parcela entre dois e quatro pontos percentuais correspondentes a todas as contribuições (e não apenas as contribuições dos trabalhadores por conta de outrem) até que aquele fundo assegure a cobertura de despesas previsíveis com pensões por um período de dois anos.

O PS propõe, para além do imposto sobre heranças superiores a um milhão de euros, o aumento da TSU das empresas com precariedade elevada, o alargamento aos lucros das empresas da base de incidência da contribuição das empresas, reduzindo porém a componente que incide sobre a massa salarial dos contratos permanentes.

Para reforçar o financiamento do sistema de segurança social, o Livre – Tempo de Avançar defende que o combate à evasão contributiva na Segurança Social seja acompanhado pelo alargamento da base contributiva a outras fontes de rendimento, mantendo como suporte essencial do regime previdencial a taxa social única (TSU) e a contribuição dos rendimentos do trabalho, prevendo neste caso uma real aproximação da contribuição à remuneração total efectiva e não apenas ao salário base.

De um modo geral entendemos de apoiar a diversificação das fontes de financiamento e o alargamento da base de incidência dos descontos, bem como a discriminação positiva das empresas com melhores práticas no mercado laboral.

2.3 Deriva assistencialista e demissão do Estado

Em Portugal, a ausência de respostas públicas que cubram satisfatoriamente as necessidades das famílias mais vulneráveis tem sido compensada pela existência de um forte terceiro sector, significativamente apoiado por transferências do OE.

O papel desempenhado pelas IPSS, Misericórdias, Mutualidades e outras organizações de caracter não lucrativo, reveste-se de grande relevo e é revelador de uma sociedade civil activamente envolvida na luta contra a pobreza e a protecção dos estratos mais desfavorecidos. Sem desmerecer a actividade destas instituições, importa porém reflectir sobre as questões de legitimidade, de eficiência e de eficácia suscitadas pela actual situação.

De facto, o aumento da taxa de pobreza em Portugal coexistiu com uma diminuição do gasto público com prestações sociais de combate à pobreza, como são os casos do Rendimento Social de Inserção e do Complemento Social de Idosos, que estão sujeitos a condição de recurso, ao mesmo tempo que aumentou a despesa com a acção social, muito influenciada pelo crescimento dos acordos de cooperação com o terceiro sector. Este, por dificuldades financeiras, não teve condições de ir além de dar respostas a situações de emergência social. Entendemos que esta deriva assistencialista decorre de uma escolha política errada por prejudicar a garantia de direitos sociais de cidadania. Pelo facto do Estado ter vindo a diminuir a sua parcela de co-financiamento, corre-se ainda o risco daquelas organizações procurarem captar preferencialmente a adesão de famílias de maiores rendimentos, com o inerente risco de enviesamento.

O Programa da CDU propõe um efectivo reforço das transferências anuais do Orçamento de Estado visando garantir prestações sociais que asseguram direitos básicos aos cidadãos em situação de carência económica e defende a responsabilidade do Sistema Público de Segurança Social na realização dos objectivos da Acção Social, quer na atribuição de apoios de carácter eventual e em condições de excepcionalidade, quer na gestão dos equipamentos da Rede de Equipamentos e Serviços Sociais. Para tanto, importa definir a relação do Estado com as instituições de solidariedade social no respeito pela Constituição e no apoio ao seu papel complementar quanto aos objectivos da Acção social e da Rede de Equipamentos e Serviços Sociais.

O Bloco de Esquerda coloca no centro das suas propostas a requalificação das funções sociais do Estado, nas suas diversas áreas de intervenção, não desenvolvendo porém medidas concretas relativamente à Segurança Social.

Embora sem se referir expressamente à questão em análise, o Livre – Tempo de Avançar afirma que a condição de recursos deve servir como instrumento da satisfação responsável e rigorosa de direitos sociais e não de repressão e estigmatização dos cidadãos que recorrem às prestações, a pretexto de reduzir a despesa pública.

Quase todos os Programas Eleitorais advogam uma maior transparência do sistema de prestações sociais, o que para além das vantagens ligadas ao aumento da confiança e credibilidade no sistema, poderia constituir um contributo importante para revigorar as relações com o terceiro sector, no contexto de escolhas políticas claras quanto à defesa dos direitos sociais de cidadania. Refira-se que o actual co-financiamento do terceiro sector pelo Estado está dependente de opções políticas, que variam ao longo do tempo, o que constitui um elemento de incerteza relativamente ao seu futuro.

3. As condições para a reforma da Segurança Social

As preocupações com a Segurança Social, designadamente no que se refere à sustentabilidade do sistema de pensões, têm estado no centro do debate sobre a capacidade de Portugal defender um modelo viável no médio e no longo prazo.

As reformas paramétricas que têm sido adoptadas mais recentemente não respondem às necessidades decorrentes da manutenção e desenvolvimento exigidas por um Estado Social moderno e capaz de responder eficazmente aos desafios que se vão colocar no futuro.

Para além da panóplia de medidas constante dos Programa Eleitorais analisados, visando contribuir para mudanças no sistema vigente, há referências expressas a uma reforma global da Segurança Social nalguns dos Programas.

O Livre – Tempo de Avançar considera que a reforma da Segurança Social pública deve assentar num intenso diálogo social e em acordos políticos alargados. Este processo deverá ser conduzido por uma comissão genuinamente plural e os estudos produzidos por esta comissão debatidos no Conselho Económico e Social, com contributos de organizações representativas de reformados e de trabalhadores precários, e não apenas na Comissão Permanente de Concertação Social ou no Parlamento.

O Programa do PS entende que qualquer reforma deverá resultar de estudos transparentes, disponibilizando informação estatística rigorosa e clara, escrutinada não apenas pelos partidos no Parlamento mas também pelos parceiros sociais em sede de Concertação Social, pela academia e pelos movimentos sociais (nomeadamente de reformados e pensionistas, de precários). Para tal, haverá que avaliar com rigor a evolução do sistema de Segurança Social nos últimos anos, o impacto das medidas tomadas e os efeitos da crise económica nos equilíbrios financeiros dos sistemas de pensões, bem como os novos desafios que se colocam decorrentes das transformações demográficas e do mercado de trabalho;

A Coligação Portugal à Frente considera que a reforma e a viabilização da Segurança Social é algo de inevitável num prazo relativamente urgente. Em virtude das dificuldades crescentes que se agudizam, entendem ser necessário levar à prática políticas reformistas que assegurem a sustentabilidade dos sistemas previdenciais de segurança social, que resultem de um debate alargado, envolvendo a sociedade civil, e necessariamente do entendimento entre todos os partidos do arco da governabilidade e que traduzam, consequentemente, a existência de um amplo consenso social e político.

Dada a necessidade de fazer escolhas e tomar decisões que vão ter influência sobre todos os estratos populacionais, entendemos que se impõe um diálogo social alargado a toda a sociedade, capaz de assentar as bases de um sistema que corresponda às necessidades sociais. Regista-se a vontade expressa por alguns partidos em proceder à procura de compromissos que, não obstante as dificuldades em presença, permitam um entendimento sobre o nosso futuro colectivo.


(inicialmente publicado no blog A Areia dos Dias http://areiadosdias.blogspot.pt/, Eleições 2015: Olhares Cruzados, http://fundacao-betania.org/ges/L2015/10_gES_Olhares-ER_IO_ML.pdf)