Artigo de Sandra Monteiro.
Para todos os que têm criticado as políticas neoliberais da austeridade, e sofrido com as suas devastadoras consequências, a possibilidade de haver um governo em Portugal com base num acordo de incidência parlamentar determinado a repor os rendimentos da maioria dos trabalhadores e pensionistas, a recuperar o emprego, a combater a precariedade e a defender o Estado social e os serviços públicos, só pode ser motivo de esperança. Uma esperança há demasiado tempo negada e, por isso mesmo, mais urgente e saborosa.
Porém, ela surge a par de uma grande incerteza sobre a capacidade que um tal governo terá de ser bem sucedido, face a diversos constrangimentos internos e externos. É certo que um tal acordo para a governação entre o Partido Socialista (PS), o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista «OS Verdes» (PEV), inédito em quarenta anos de democracia, e que existe também por força da dimensão da crise, significa que foi desbloqueado um grande nó que paralisava a esquerda parlamentar: se parte dela não tinha uma estratégia para participar na governação, a outra parte não tinha uma estratégia política para defender a sustentabilidade económica dos valores e princípios que dizia defender.
O simples facto de este nó começar a ser desfeito suscita já reacções por parte de quem contava que o sistema poderia esmagar continuadamente os povos sem que a representação política, fortemente condicionada por media sem real pluralismo de perspectivas, deixasse de estar solidamente acantonada à direita. No campo mediático, vê-se uma invasão do comentário conservador, liberal e manipulador. No campo político e institucional, sucedem-se as declarações alarmistas de quem convive mal com a democracia, com o vice-primeiro-ministro Paulo Portas a invocar um «PREC II» ou, muito mais grave, com o presidente Aníbal Cavaco Silva, no discurso de 22 de Outubro de indigitação do governo de Pedro Passos Coelho – decisão em si mesma inquestionável –, a recorrer a argumentos inaceitáveis à luz da Constituição e dos poderes que esta lhe atribui. Por muito que Cavaco Silva gostasse, a crítica aos tratados ou à moeda única, e muito menos a acordos por discutir e assinar como o Tratado Transatlântico, não é impedida pela Constituição. Nem ela lhe permite afastar da governação as forças políticas que os combatem. Razões de sobra, aliás, para os defensores da democracia estarem atentos quando surgem propostas de incluir na Constituição aspectos como o cumprimento do défice estrutural ou dos tratados europeus (lembram-se?).
Os neoliberais criaram com a austeridade um edifício político-ideológico tão rígido, radical e absoluto que, além de não aceitarem alternativas à sociedade que querem construir, não se conformam com o legítimo debate democrático. Repetem por isso que o regime, a sua preciosa estabilidade (das desigualdades socioeconómicas) e a sua preciosa fluidez (dos movimentos dos capitais) estão sob a ameaça de uma «extrema-esquerda» prestes a intervir na governação. É curioso, vindo de quem tem tido como missão reconfigurar de alto abaixo os pilares que sustentam a sociedade (democracia, Estado social, serviços públicos, leis laborais). Mas é sobretudo irónico, quando se olha para os pontos em que deverão assentar as negociações destes partidos (BE, PCP, PEV) com o PS. É «extremista» um acordo que não põe em causa compromissos externos e se limita a encontrar soluções para substituir a austeridade por outras fontes de receita e por políticas de emprego capazes de fomentar a procura interna, diminuir as despesas sociais geradas pela própria austeridade? Ou o «extremismo» é desmascarar a austeridade como um conjunto de medidas para retirar rendimentos ao trabalho e às pensões, apoiando-se na pressão do desemprego, da precariedade, da dívida, do défice e dos constrangimentos do euro?
Só duas preocupações – além da já referida vontade de esconder a sua própria agenda radical para melhor a manter – podem justificar o afã com que os neoliberais agitam o fantasma dos «extremistas de esquerda». Uma delas poderá prender-se com a expectativa de os próximos anos serem mais difíceis do que 2015, em vários aspectos. Do agravamento do esforço que representará, a montantes e juros actuais, o pagamento da dívida, até novos aumentos do preço do petróleo e revalorização do euro, passando pelos efeitos do abrandamento do crescimento chinês, não é de contar com facilidades. E isto poderá acelerar a tomada de consciência dos cidadãos e das forças partidárias quanto à necessidade de rever a estratégia de «moderação» com que podem neste momento encarar as políticas indispensáveis à defesa de rendimentos dignos, de serviços públicos universais e tendencialmente gratuitos, da coesão social e territorial do país. Nessa altura, serão prejudicados interesses e negócios hoje florescentes, a começar pelas privatizações, concessões e parcerias público-privadas na educação, na saúde ou nos transportes.
Mas os defensores da austeridade europeia podem estar a manifestar uma segunda preocupação. Se acontecer, como na Grécia com o primeiro governo de Alexis Tsipras, que as instituições europeias e os credores reajam a medidas tecnicamente inatacáveis (por não comprometerem saldos orçamentais) como sendo politicamente inaceitáveis (por porem em causa os verdadeiros objectivos a austeridade), será cada vez mais claro, para uma esmagadora maioria, que o problema não está em vivermos acima das nossas possibilidades, nem em quaisquer estratégias arrogantes de confronto, como se disse do governo grego, mas numa arquitectura europeia e monetária onde a solidariedade é um mito e o radicalismo da liberalização total (do comércio, dos fluxos financeiros, das relações sociais e laborais) é rei. Nessas condições, adivinha-se que os países deficitários do Sul europeu estariam condenados ao empobrecimento e a crescentes desigualdades. Com essa resposta europeia é que poderá confirmar-se, qual profecia auto-realizada, a radicalização de esquerdas por agora disponíveis para governar a favor dos cidadãos dentro dos constrangimentos europeus.
Haverá ou não margem de manobra de negociação e governação? Ninguém pode, neste momento, ter a certeza. Talvez os neoliberais estejam convictos de que essa margem não existirá e estejam já, com os seus alarmismos, a preparar eleições antecipadas para colocar o ónus do fracasso numa experiência tentada à esquerda, vacinando os povos contra repeti-la. Significa isto que é às esquerdas no seu conjunto, e não apenas aos seus representantes políticos, que compete trabalhar desde já para dar força aos benefícios em cascata que advirão da reposição de rendimentos, do reequilíbrio das relações de trabalho, do combate ao desemprego e da defesa do Estado social universal e tendencialmente gratuito. Tal como lhe compete desmascarar os constrangimentos das instituições neoliberais e de uma moeda estruturalmente mal desenhada e pressionar no sentido da regulação dos sistemas financeiro e comercial, tantas vezes anunciada mas sempre adiada. Se não o fizermos, um eventual fracasso político, de facto causado pelas regras neoliberais, vai servir sobretudo para culpar as esquerdas e para as manter duradouramente fora do poder.
Artigo publicado no Le Monde Diplomatique – edição portuguesa