Artigo de Fernando Belo.
Todas as ciências sociais dignas desse nome foram instituídas a partir (além da geometria) da matriz filosófica herdada pela Europa da Grécia e das universidades medievais, matriz com a qual tiveram que romper como condição da sua autonomia científica, tanto teórica quanto metodológica e experimental. Foi Kant quem teorizou filosoficamente essa ruptura e concedeu autonomia às ciências que se instituíram barulhentamente nas universidades europeias do sec. XIX. Mas não podendo darem-se conta dos motivos teóricos e práticos adquiridos a partir dessa ruptura, não podendo justificarem-se epistemologicamente, as ciências guardam do seu nascimento uma espécie de umbigo filosófico que o seu desenvolvimento histórico reelaborará sem que os seus cientistas dêem por ela. É verdade das ciências da matéria e da energia, as primeiras e romper desde Galileu e Newton, das ciências dos vivos, das sociedades, da economia enquanto ciência social. É este umbigo inacessível aos economistas que, sem que eu o seja, me interessará aqui: abordá-lo-ei a partir do que chamei filosofia com ciências ou fenomenologia reformulada, sem poder detalhar aqui esses meus pressupostos.
As ‘leis económicas’ dependem dos contextos sociais
Começarei citando dois economistas, cuja competência releva de economias exteriores ao espaço euro-americano. Primeiro, o japonês Taichi Sakaiya, que trabalhou no célebre Ministério do Comércio e Indústria Internacionais (MITI), aonde foi o responsável pela Expsição Mundial de Osaka 1970 e pela Exposição Internacional do Oceano de Okinawa 1975. “A experiência do Japão moderno, sobretudo depois da guerra, é cheia de excepções ao que, a nível mundial, é considerado como um corpus de leis económicas. Por exemplo, o Japão conseguiu um crescimento económico rápido ao mesmo tempo que os diferenciais dos rendimentos diminuíam de forma considerável. As empresas cresceram e os seus empregados tornaram-se mais leais para com elas. O leque salarial reduzido e o sistema de emprego para a vida inteira não fizeram diminuir a competição para a promoção nas empresas. Ainda que as diferenças entre os rendimentos e as posições baseadas em diplomas académicos sejam menores do que em qualquer outro país, a competição nos testes e exames é intensa. Quando os níveis de rendimento aumentam, os trabalhadores não baixam o ritmo do trabalho. A urbanização crescente foi seguida duma diminuição das taxas de criminalidade. Uma transição para o sector dos serviços na actividade económica não produziu um aumento da economia subterrânea” (Sakayia, p. 151). O que implica que este “corpus de leis económicas” muda segundo as diferenças antropológicas (históricas ou sociológicas), o que o autor ilustra seguindo o percurso histórico do Japão.
A uma conclusão semelhante – a alteração das leis económicas segundo os contextos sociais – chegou o economista francês Jacques Sapir, que acompanhou in loco desde os anos 80 a economia soviética primeiro e russa em seguida, ensinando a ciência económica em Moscovo. É a sua competência excepcional sobre “o fracasso repetido das políticas inspiradas, ou sugeridas, pelas organizações internacionais e pelos seus colegas que gozam da melhor reputação na profissão” (Sapir, p. 9) que torna preciosa a citação que encerra a discussão conduzida sobre “quatro dos principais paradigmas da acção económica contemporânea [que] nos deixa perceber o campo de ruínas em que se tornou o pensamento económico dominante. […] 1. As vantagens e desvantagens dum crescimento da concorrência, da descentralização, da flexibilidade ou dum reforço da propriedade privada [são os quatro paradigmas discutidos], são contingentes aos contextos institucionais, estruturais e técnicos em que essas decisões devem ser tomadas. Não pode pois haver nenhuma regra geral, mas uma análise caso por caso, e a contribuição dos economistas pode residir numa análise concreta de situações concretas. 2. A economia, enquanto disciplina científica, não pode fundar na sua totalidade uma tal decisão, seja em que sentido for. Há uma parte irredutível de escolha social e ética que implica que a decisão não seja de técnicos, juristas, mas que ela empenhe a representação política da comunidade em questão”(1).
Ciência social ou ciência da sociedade ?
É que a economia não é uma ‘ciência da sociedade’ na sua globalidade, ela é apenas uma ‘ciência social’, tal como a linguística, o direito ou a demografia, ou mesmo a medicina, isto é, uma ciência que trata de certas estruturas das sociedades contemporâneas, as que dizem respeito ao mercado, enquanto que a ciência que deveria dar conta da globalidade das estruturas dessas sociedades, a sociologia, é manifestamente incapaz de o fazer, parecendo limitar-se a certos campos – sociologia da educação, da família, da cultura, dos médias, eleitoral, e por aí fora –, como uma ‘ciência social’ entre outras, confessando-se implicitamente incapaz de atingir a maneira muito complexa como essas diversas estruturas se imbricam umas nas outras, algumas (a língua, escola e médias, administração política e mercado) atravessando todas as outras. O que penso é que, assim como no tempo da organização moderna dos Estados nações, coube ao direito o papel indispensável de ‘ciência da sociedade’ global, também é hoje, nestes tempos de globalização dos mercados, a economia que supre uma sociologia incapaz de assumir esse papel que teoricamente lhe competiria. E como estar-se-á facilmente de acordo que esse papel seja cumprido pela economia enquanto a sociologia não estiver à altura dele, a questão que há que colocar é a das escolhas que ela tem que fazer, dada, como dizia Sapir, “a parte irredutível de escolha social e ética que implica que a decisão não seja tomada por técnicos, juristas”, os técnicos em questão sendo aqui claramente os economistas. Estas escolhas, na medida em que elas relevem de abordagens científicas, deveriam ser primeiro objecto das investigações da sociologia, é a ela que os políticos, os activistas e os cidadãos deveriam pedir esclarecimentos. Também os economistas: que estatísticas ter em conta, o que é que há que preservar de social à partida?
A lei da selva e a lei da guerra
Para perceber o que é que com efeito é problemático na globalização dos mercados e das tecnologias, incluindo os médias, há que fazer uma breve digressão recordando como a evolução foi dominada pela lei da selva, ligada a razões bioquímicas precisas (1II. 4-5). As espécies mais evoluídas, os artrópodos entre os invertebrados e as aves e os mamíferos entre os vertebrados, chegaram a endogamias estritas para defenderem o que as torna diferentes das que estão mais próximas, mormente o sistema neuronal que articula em torno do cérebro os órgãos de percepção e locomoção, quer para a preensão das presas, quer para se defenderem dos predadores. Foi por isso que nós, os humanos, herdámos músculos e cérebros de espécies hábeis para se desenvencilharem sob a violência da lei da selva. Se a invenção da agricultura e da criação de gado representou a domesticação pelas sociedades humanas da lei da selva, esta já se tinha deslocado para uma outra forma de lei, a lei da guerra entre elas, sociedades, P. Clastres tendo demonstrado a existência de uma fronteira dentro da qual se trocam mulheres e presentes, fora da qual se guerreia. A explicação passaria aqui por um factor que se dirá antropo-químico, ‘vontades’ (envies) com base hormonal que, por um lado, pedem regras morais, usos e costumes, a começar pelo interdito do incesto, para os moderar ‘ad intra’ e, por outro lado, empurram para a guerra ‘ad extra’. De forma muito geral, como vimos, trata-se da ‘vontade’ de fazer como os outros, essencial à dinâmica de toda a espécie de aprendizagem, mas que facilmente se pode tornar ‘vontade’ (envie) de ser invejado (envié) pelos outros como o mais forte e hábil. Ora, a agricultura e a domesticação de gado, ao mesmo tempo que controlavam a lei da selva, também tornaram possível a acumulação de riquezas não perecíveis que fizeram mudar a natureza da guerra, a tornaram guerra de conquista – de espólios e despojos, de escravos, de sociedades reduzidas à vassalagem –, as castas nobres sendo em todo lado a dos guerreiros.
O comércio global contra a guerra global
O livro notável do socialista não marxista Karl Polanyi, La Grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps, escrito em 1944, após as suas primeiras palavras – “a Paz de cem anos. A civilização do século XIX desabou” (p. 219) – prossegue um pouco adiante: “no século XIX produziu-se um fenómeno sem precedentes nos anais da civilização ocidental: os cem anos de paz de 1815 a 1914. À parte a guerra da Crimeia, acontecimento mais ou menos colonial, a Inglaterra, a França, a Prússia, a Itália e a Rússia não fizeram guerra umas às outras senão dezoito meses no total” (p. 23), apesar da enorme quantidade de conflitos ‘locais’ que balizaram o século (2). Eis o seu diagnóstico: “o comércio estava agora ligado à paz. No passado, a organização do mercado tinha sido militar e guerreira. Era um auxiliar do pirata, do corsário, da caravana armada, […] dos mercadores com espada, da burguesia urbana em armas, dos aventureiros e exploradores, dos senhores das plantações e dos conquistadores, dos caçadores de homens e dos traficantes de escravos, e dos exércitos coloniais das companhias. Tudo isso agora estava doravante esquecido. O comércio dependia agora dum sistema monetário internacional que não podia funcionar durante uma guerra geral. Exigia a paz, e as grandes Potências esforçavam-se por a manter” (p. 36). Isto era escrito a quente: a primeira globalização, após uma centena de anos de paz, acabava de sofrer durante 30 anos uma implosão inenarrável, é o que o seu livro procura explicar. A tese é a seguinte: o mercado auto-regulador (promovido pelo liberalismo inglês) foi a causa das duas grandes guerras, na medida em que desencadeou proteccionismos de defesa que degeneraram em nacionalismos. Eis o ponto decisivo da sua argumentação: ‘mercadoria’ sendo empiricamente definida como objecto produzido para ser vendido no mercado e ‘mercado’ como os contactos efectivos entre vendedores e compradores, resulta na prática que deve haver mercados para todos os produtos da indústria; este postulado, diz Polanyi, é falso no que diz respeito à força de trabalho, à terra e à moeda, já que nenhum foi produzido para ser vendido, nenhum é pois ‘mercadoria’. Os três devem ser preservados do estatuto mercantil que o liberalismo lhes atribuiu.
“O capitalismo prospera; a sociedade degrada-se”
Não é aqui o lugar (nem eu teria competência para tal) de discutir esta tese, que nos pode em todo o caso servir de indicador sobre um ponto essencial da nossa actualidade: o liberalismo acérrimo, regressado há uns 30 anos, corre o risco de destruir as estruturas da própria sociedade global, já que “o capitalismo prospera; a sociedade degrada-se”, constatam numa fórmula lapidar Luc Boltanski e Ève Chiapello. Quer dizer que novas formas de implosão podem perfilar-se no horizonte. Em todo o caso, parece que, apesar da frequência de conflitos locais, os 65 anos de paz global desde 1945 devem ser contados como a retomada da que durou todo o século XIX. Seremos libertados então da lei da guerra? Claro que não. Enquanto as instituições e tratados de direito internacional prosseguem a busca do seu controle, ela simplesmente deslocou-se para outro lado, sem cessar o seu jogo para onde rivalidades e raivas se manifestam, isto é, onde quer que haja humanos. Além dos conflitos locais e regionais, ela é bem visível, por exemplo em que as regras a tornam ‘simbólica’, como se diz, na organização espectacular dos desportos, tanto na áspera competição dos atletas como na paixão dos seus adeptos. Por outro lado, o que aqui nos interessa, ela tem um papel fundamental em economia que, no domínio financeiro, está cada vez mais dependente duma verdadeira guerra dos capitais. Talvez haja só os economistas para não se darem conta, por razões ideológicas do ofício, já que é evidente para qualquer observador honesto, isto é cujo objectivo na vida não é enriquecer, é evidente que a lógica profunda da economia mundial nos últimos 30 anos é a duma guerra de números, que busca os números cada vez maiores. Números que se tornam astronómicos, portanto abstractos: que sejam maiores do que os dos concorrentes. É certo que esses números traduzem-se em poder comprar unidades sociais, nomeadamente no estrangeiro, territórios a ‘conquistar’ como no colonialismo clássico, agora por meio de capitais e tecnologia, mas também aí o que se procura é o aumento dos números. É o momento de procurarmos abordar o coração da ciência económica.
A moeda e a redução científica em economia…
Por onde o fazer, da maneira ‘fenomenológica’? Digamos que os economistas não fazem nada para nos facilitar a tarefa. Num belo texto de 1969, Numismatiques, uma espécie de teoria filosófico-lacaniana das moedas, J.-J. Goux aborda a economia pela teoria da moeda e da mercadoria do Capital de Marx. O ponto decisivo é que o papel de qualquer equivalente geral de circulação de mercadorias, o ouro na época, implica que ele seja excluído, retirado do seu estatuto de mercadoria, para se tornar – sob a forma de moeda – susceptível de ser trocado por qualquer tipo de mercadoria, segundo preços expressos por cada uma em valor monetário. Para os estabelecer, é preciso, é certo, contar os seus diversos custos de produção industrial, mas uma vez isso feito, o produto torna-se mercadoria durante o tempo da sua circulação no mercado, o seu valor de uso sendo reduzido, ignorado pelos números do mercado, como condição estrutural da própria troca, do próprio mercado, e portanto também da economia enquanto ciência. Esta trabalha com números estatísticos: preços e quantidades de mercadorias, pagamentos e vendas, custos e lucros. Esta redução é a operação propriamente científica da economia, tal como a mutação em linguística estrutural ou as medidas de distância, tempo, peso, temperatura, etc., em física. Ela torna possível a constituição de arquivos estatísticos como laboratório científico da ciência económica, fora da cena propriamente dita do mercado e do seu aleatório indefinido, torna possível instituir ‘fenómenos económicos’, no sentido de susceptíveis de ‘experimentação científica’. Trata-se de fragmentos (laboratoriais) que a teoria – organizadora da experimentação – deve reunir, unificar, afim de poder em seguida generalizar. Como vimos (III. 45-47), qualquer laboratório científico de qualquer ciência reduz por definição, por estrutura, a ‘coisa’ a analisar, retirando-a do seu contexto na cena da dita realidade: a comutação linguística reduz o ‘sentido’ das unidades linguísticas analisadas para constituir os seus paradigmas, como o físico reduz a ‘qualidade’ dos fenómenos para não reter senão as dimensões requeridas para a experimentação. O que significa que há uma ‘cegueira’ desta redução que é a ranção da cientificidade ganha, cegueira sobre a cena ‘real’, sobre a singularidade dos seus jogos incessantes, sobre as suas indeterminações. É esta cegueira dos laboratórios dos engenheiros que explica, por exemplo, os efeitos de poluição das suas máquinas, efeitos que o laboratório teve que reduzir, deixar fora do laboratório. Quando uma dada teoria económica tem como finalidade compreender, ou mesmo ‘prever’, tais agenciamentos macroeconómicos, não se pode tratar nem das ‘predições’ sobre o comportamento de tal ou tal agente económico, nem das suas incidências noutros factores sociais reduzidos pela redução científica. Por exemplo, se tal política económica pode prever os limiar es do aumento do desemprego que será consequência da sua aplicação, não pode todavia saber, por ela mesma, se haverá ou não em consequência uma explosão social, ou algo semelhante, que possa pôr em causa o aspecto económico que essa política visava regular.
… escondem a política dentro das escolhas económicas
O que é problemático, é que é esta redução de tudo o que não é mercado pela moeda, esta operação científica da economia, que justifica, parece-me, a viragem monetarista dos anos 70 para o neo-liberalismo de que hoje constatamos os efeitos de crise sobre as sociedades (3). Contradição do meu discurso? Pelo contrário, é a sua confirmação: a economia não é uma ciência da sociedade, é apenas uma ciência social, a que diz respeito à estrutura social que é o mercado e, para sê-lo, tem que reduzir tudo o que nas sociedades modernas não é susceptível de mercado, que ela não pode senão ignorar, devido à cegueira metodológica dessa mesma redução, limites do seu laboratório. Foi assim que este neo-liberalismo monetarista expulsou a economia política de Keynes que tornou possíveis os famosos 30 gloriosos anos de 47-73, a expulsou com argumentos próximos das ‘evidências científicas’ ligadas a esta redução. A moeda presta-se a isso, com efeito: o capital (qualquer que seja a sua forma jurídica de propriedade, privada, fundos de pensões, estatal) seria o único factor social que não é reduzido, já que ele se exprime em unidades monetárias, enquanto que os trabalhadores são reduzidos a salários que são facilmente ‘escondidos’ como ‘custos de produção’(4), fáceis de suprimir em nome da produtividade, isto é, da concorrência entre capitais, sem que o desemprego seja ‘visível’ nas contas. Outra consequência é a chamada flexibilidade que visa diminuir, senão anular, o que foi uma das principais apostas liberais nos séculos clássicos (Locke e Rousseau), a noção de contrato social entre homens de palavra, como alternativa filosófica às relações hierárquicas sacralizadas do Antigo Regime, e que representa a única defesa social, jurídica e não económica nem directamente política, de quem ‘produz’ aquilo de que o capital colhe os frutos. Coisas que a economia enquanto ciência ignora.
O que desaparece nesta maneira liberal de fazer as contas económicas é um dos pontos incontornáveis da análise socialista: a distribuição das mais valias da produção industrial, após abaterem-se os custos em materiais e energia e pagos os impostos e juros de financiamento, esta redistribuição – entre o conjunto dos salários de todos os que trabalham na empresa, por um lado, e os lucros do capital – permanece essencialmente aleatória. Ela não é susceptível de uma regra científica ou dum critério aritmético intrínseco, é sempre o efeito duma apropriação. É óbvio que ela não é independente da cena do mercado e da sua instabilidade estrutural, a montante como a jusante. Nomeadamente depende de que os salários deverão permitir a reprodução quotidiana dos trabalhadores e das suas famílias (precavendo-se as futuras gerações) que habitualmente, pelo efeito da própria revolução industrial que concentrou as populações nas grandes cidades, não dispõem já dos recursos de auto-consumo (hortas e galinhas) e têm portanto que comprar tudo aquilo de que precisam. Mas estas precisões, por outro lado, também são aleatórias e não têm limites: pelo jogo disseminante da própria publicidade das marcas, fomentado pelo valor de uso em vista de melhorar o valor de troca no mercado, há sempre coisas de mais a querer comprar, viajar, etc. A distribuição entre salários e lucros constitui uma aporia, entre ‘vontades’ (envies) mais ou menos invejosas (envieuses), aquilo a que os marxistas chamam ‘luta de classes’: não havendo solução racional, esta não pode pois ser senão política. Marx teorizou-a como contradição entre capital e trabalho, tendo decidido politicamente (5) eliminar um dos factores, com a consequência de restrições à liberdade que se viram. O neo-liberalismo tende a fazer a ‘decisão’ inversa, a ‘ignorar’ o factor trabalho, como se disse (‘custos’ e não ‘contratos’), ou seja a ignorar a ‘sociedade’(“a sociedade não existe”, disse Mrs. Thatcher): a crise financeira recente, ao provocar a devastação das próprias economias, mostra bem o erro da ministra. Estes dois séculos de industrialização capitalista contam como a solução da aporia foi sempre política, através quer de greves e de lutas mais ou menos selvagens, quer de concertações mais ou menos sob a égide do Estado. É este carácter essencialmente político da economia ser apagado pela redução monetária, que dá boa consciência liberal – trata-se sempre da lei da guerra – aos generais, oficiais e sargentos, aos quadros das grandes empresas, cuja finalidade é a de enriquecerem, os seus salários costumando ser negociados nos bastidores.
O imperativo da poupança dos custos (economia no sentido corrente da palavra) que hoje se generaliza – em nome da sacrossanta competitividade, da guerra dos capitais – tem assim um alvo imediato, evidente, os salários da infantaria (chamam-se assim os que não têm palavra – in-fans – na guerra), o seu despedimento e readmissão facilitados, ‘flexíveis’. O outro alvo diz respeito ao domínio da produção, submetido à competência do engenheiro e não do economista gestionário. Com efeito, há um duplo laço nas empresas, um técnico, que liga máquinas, matérias primas e trabalhadores no processo de produção (as “forças produtivas” de Marx) e o outro, mercantil, que liga ao mercado (as “relações de produção”), as suas duas leis são indissociáveis (não há trabalho sem capital e mercado) mas também têm aspectos inconciliáveis, numa aporia articulada à outra, o engenheiro sendo sistematicamente submetido à pressão de baixar os preços, com os riscos de qualidade da produção. Já que o engenheiro, aludiu-se acima, também opera uma redução laboratorial com a respectiva cegueira estrutural, por exemplo tudo o que diz respeito ao ambiente, quer o interno do fabrico e das condições de trabalho, quer o exterior, a chamada poluição. Aqui, a pressão da poupança dos custos, cega do ponto de vista da ciência económica, opera-se sobre uma outra cegueira ‘científica’, o perigo tornando-se duplo e devendo ser também evitado politicamente, corrigido por outros critérios, como sucede na confecção dos orçamentos nacionais ou municipais, isto é, por instâncias essencialmente locais, cada vez mais impotentes diante da multinacionalidade do capital e da tecnologia.
A cegueira estrutural duma ciência social que se toma por ciência da sociedade
Em resumo, a redução monetária, própria da economia enquanto ciência social, é incompatível com o lugar por ela ocupado duma ciência da sociedade, já que esse lugar tem que ter em conta o que é reduzido, deveria articular as diversas reduções das diversas ciências sociais. É certo que não é fácil dizer o que seria, o que será? essa ciência global da sociedade(6), mas insista-se. As pessoas podem ser mais ou menos avisadas, inteligentes e sensíveis à ecologia e ao social, esta cegueira estrutural da economia enquanto ciência tem efeitos sobre as suas hipóteses teóricas, sobre a sua maneira de seleccionar as estatísticas a ter em conta, permite compreender as diferenças de concepção (ideológicas, de boa consciência) entre os diversos actores, tanto económicos como políticos. A questão que haveria que levantar: faltando uma sociologia como ciência das sociedades globais que servisse de guia à economia enquanto ciência do mercado, podem-se encontrar critérios susceptíveis de consenso científico, que não o duma ‘ciência normal’ (Kuhn) cega? À maneira, por exemplo, da ciência jurídica, que recebe as questões sobre as quais trabalhar – a escravatura, o aborto, a pena de morte, a eutanásia, a pedofilia – do debate político democrático: não é ela, ciência social terapêutica, que decide das respostas a dar-lhes. Seja outro exemplo duma ciência positiva terapêutica, a biologia dos mamíferos humanos enquanto ciência, isto é, a medicina. Sendo uma ciência positiva, visa mais do que o conhecimento fundamental em anatomia e fisiologia humanas, visa as suas doenças, tem por finalidade as curas singulares. Foram as doenças, desde Hipócrates pelo menos, que puseram as questões a que a medicina tenta responder: ninguém negará que, tal como o direito, a medicina é uma ciência essencialmente terapêutica. Ora, acontece que, nas sociedades modernas, hospitais, indústria farmacêutica, consultas médicas, clínicas variadas, pertencem às unidades sociais de que a economia se deve ocupar, dos seus custos, salários, lucros, etc., fazendo face à aporia de decidir entre curar e poupar, lucrar. Há muito tempo que os médicos sabem que a alimentação, tanto a quantidade quanto a qualidade, é essencial para a saúde das populações: se se encontrarem diante duma situação de fome acelerada, diante dum desemprego crescente, por exemplo, devido a uma crise económica grave, corre-se o risco de se porem problemas insolúveis de custos de tratamentos que farão agravar a crise. Se esta for económica, não se pode pretender que se trate duma questão exterior à economia enquanto ciência, já que ela diz essencialmente respeito, antes de tudo o mais, a gente que come (como justificar os salários se não for assim?). O que significa que a fome é uma questão social que se põe à economia antes de se por à medicina, conclusão sem dúvida inesperada: a economia tem que ter em conta a biologia nas suas hipóteses teóricas de base, esta conclusão faz parte da ‘unificação dos saberes’.
A tarefa da economia política: controlar a lei da guerra dos capitais
Invoquemos para terminar um outro economista não alinhado com o pensamento único da Escola de Chicago. Segundo o canadiano Gilles Dostaler, a designação clássica de economia política faz “referência a uma tradição multidisciplinar de abordagem dos problemas económicos e sociais, em oposição a uma abordagem mais fechada ou especializada que postula que a sociedade é composta duma soma de agentes racionais. [… ] [hoje] convidam-se os economistas na praça pública como técnicos que teriam uma resposta técnica a um problema técnico […] podendo ser tratado matematicamente e de forma determinista. […] Keynes denunciou esta hiper-matematização, ele dizia que o ciclo económico é um processo político, social, psicológico, ideológico, tão complicado que não se o pode por numa equação e dizer: ‘é assim! Se se passa isto, vai suceder aquilo…’. Keynes dizia que o economista deve ser humilde como um dentista [um terapeuta], um tecnicozinho. Ora, […] hoje dá-se à economia um estatuto análogo à física ou à biologia”(7). Através da redução operada pela moeda, a eco-nomia deve ser a ciência da habitação (oikos, a casa, nomos, o seu governo), tal como a medicina é a ciência das doenças através da redução operada pelos laboratórios bioquímicos. É óbvio que não tenho nada a dizer de minimamente preciso a respeito do que deve ser esta economia enquanto ciência terapêutica da habitação humana na Terra, das suas maneiras de ter em conta as questões ecológicas(8), a fome, a pobreza, o desemprego, como chegar a esse controle da lei da guerra no que diz respeito ao capital financeiro especulativo. A ‘especulação’, do latim speculum, espelho, é um exemplo flagrante dos efeitos da cegueira monetária: nas bolsas, só se dá atenção ao que mostram os ecrans, os números dos capitais, lucros e perdas, sem se saber directamente nada da realidade empresarial e económica, dos trabalhadores e das poluições, excepto pelos seus efeitos nos números do espelho. Os mesmos Gregos que inventaram a economia, inventaram também a democracia como maneira política, através de debates e votação de leis, de impedir que as casas poderosas não absorvam ou esmaguem as casas mais fracas. Os Romanos inventaram o direito por razões semelhantes, mas dando lugar ao direito de uso e abuso da propriedade aos cidadãos ricos, que gozavam do imperium, dum poder de expansão por via militar que porventura estará na raiz remota dos números astronómicos que servem de alvo na guerra dos capitais, cuja única condição parece ser a de ser maior do que os dos concorrentes. Ora, assim como camiões TIR, carros de luxo e carros utilitários usam as mesmas estradas devendo sujeitarem-se à regulação do código da estrada, assim também os Estados devem regular, criar regras democráticas às economias nacionais. A sua impotência crescente diante das finanças multinacionais, exibida na crise que essa especulação provocou sobre as economias americana e europeias será uma outra razão para a ciência económica assumir a necessidade de regulação política dos mercados. Já que se ela não serve para evitar este conflito entre finanças e economia, que ciência é ela?
A questão é que isso implica uma viragem epistemológica que não se vê como acontecerá, quem ou o quê poderá estar na sua origem. Um exemplo histórico relativamente recente, o da economia política de Keynes nos anos 30, poderá dar alguma luz. Do pouco que sei, pode-se pensar que, vendo a crise de 1929 e compreendendo as lições do New Deal de Roosevelt, ele procurou repensar a sua ciência no sentido do que seria necessário para remediar à crise, responder-lhe terapeuticamente. “Não pode pois haver nenhuma regra geral, mas uma análise caso por caso”, dizia Sapir, como é o caso das ciências terapêuticas, ‘cada caso é um caso’, diz-se habitualmente em medicina e reabilitação, na jurisprudência ou no projecto duma barragem ou duma ponte em engenharia civil. Haverá sem dúvida já jovens economistas que buscam trabalhar nesse sentido. Admitindo que cheguem a resultados susceptíveis de aplicação terapêutica, o problema será: e como fazer para que estas novas concepções penetrem nas universidades de pensamento único, se tornem, senão dominantes ou maioritárias, pelo menos admitidas à exposição magistral, à discussão? Como pretender que essas discussões possam contribuir para o que Boltanski e Chiapello chamaram o “novo espírito do capitalismo”, cheguem a ter efeitos na guerra dos capitais? O exemplo de Keynes é paradoxal: a sua teoria só teve êxito entre os economistas e os políticos após a guerra de 39-45, foi preciso um cataclismo pavoroso para que a viragem da ciência económica fosse viável. Ora, eu escrevi isto em 2007, depois houve uma crise fortíssima que justificou, infelizmente, aquilo que aqui escrevi (a especulação sobre as ‘subprimes’ desencadeou falências de bancos e desmoronou numerosas economias fundadas em créditos estrangeiros) e somos obrigados a constatar que, nem economistas, financeiros ou dirigentes políticos nem eleitores (a votarem à direita), ninguém parece ter aprendido nada! Não havia Keynes nenhum? Ou o cataclismo não foi suficiente? Há, é certo, correntes alter-mundialistas e ecologistas muito variadas, mas para deixarem de ser minoritárias, precisarão duma crise mais forte? Um texto como este não podia terminar bem.
(Comunicação ao Colóquio Vivre en Europe, Philosophie, Politique et Science aujourd’hui, org. de Diogo Sardinha, Instituto FrancoPortuguês, em Lisboa, 2931 outubro 2007, Actas publicadas em março de 2010, L’Harmattan; texto inédito em português)
Notas:
[1] Sapir, pp. 2634 (sublinhado meu).
[2] Guerras civis, revoluções e contrarevoluções, intervenções diversas da Santa Aliança, recuo europeu do império otomano, novas nações europeias, nomeadamente a Alemanha e a Itália unificadas, Rússia e Estados Unidos que se tornam potências mundiais, guerras abertas da Inglaterra e da França na Ásia, Índia ou África (p. 24).
[3] Ocidentais, agravada pelas deslocalizações industriais para regiões de fracos salários.
[4] O que parece dar razão a Polanyi, como também a especulação financeira sobre os capitais e a maneira como o neocolonialismo explora as terras das antigas colónias, expulsando os camponeses indígenas com argumentos económicos.
[5] No Manifesto do Partido Comunista, a abolição da propriedade privada não vem no capítulo teórico, mas no segundo, o do programa do partido.
[6] O mais que consegui em Belo, 2007, 4.618.
[7] “Qu’estce que l’économie politique? Entrevue de G. Dostaler” por Forgues e Thériault, in ww.unites.uqam.ca./aep/dostaler.html
[8] A ecologia é outra ciência da habitação, complementar da economia e de outras ciências sociais.