Artigo de Cláudia Joaquim.
Pedro Mota Soares, Ministro da Solidariedade Emprego e Segurança Social, terá afirmado recentemente que o país só não entrou em rutura social por causa do trabalho feito pelas instituições sociais.
Esta é, numa primeira análise, uma verdade irrefutável!
É inquestionável o papel que as instituições sociais têm tido ao longo das últimas décadas na prossecução de políticas de ação social de proximidade, no apoio às famílias e à comunidade e na integração de grupos sujeitos a riscos de marginalização. Sucessivos Governos atribuíram às instituições sociais o estatuto de parceiro na prossecução das respostas sociais em Portugal. Em particular a partir da década de 80, assistiu-se a um aumento bastante significativo do número de instituições particulares de solidariedade social (IPSS), evolução associada ao enquadramento legal criado naquele período, impulsionada posteriormente com a assinatura do Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social em 1996, e sustentada através do cofinanciamento público atribuído às IPSS para a construção de equipamentos sociais, a partir de 1981 através do PIDDAC, e mais recentemente com a criação de outros programas de investimento.
Cerca de, 70% das entidades proprietárias de equipamentos sociais são entidades não lucrativas o que é revelador da importância que o terceiro setor assume na prestação destas respostas, sendo as mais representativas a Creche, a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (Lar para Idosos) e o Serviço de Apoio Domiciliário a idosos. A capacidade das respostas sociais que integram a rede de equipamentos sociais quase duplicou, entre os anos de 2000 e 2013, totalizando uma oferta de 760.000 lugares. Esta rede, espalhada por todo o país, é fundamental no apoio às famílias, na conciliação da vida pessoal com a vida profissional.
Neste contexto, é natural que o membro do Governo que tutela a segurança social valorize o papel das instituições sociais. Contudo, nas declarações que prestou foi mais além. De acordo com a notícia supracitada, terá afirmado que “A nossa obrigação enquanto Governo era capacitar as instituições sociais para estas poderem servir as pessoas, por isso tivemos a capacidade, do ponto de vista orçamental, de reforçar o orçamento para a ação social. São mais 450 milhões de euros do que acontecia em 2011 quando iniciamos funções”.
Com efeito, de acordo com o documento “4 anos de credibilidade e mudança” o Governo nos últimos 4 anos aumentou, de forma significativa, as transferências financeiras para as instituições sociais, através:
- “Reforço em 440 milhões € da verba de Ação Social, face a 2011 e que desde 2009 estava a cair. Desde o primeiro orçamento, em que aumentámos em 16%, que desde sempre se incrementou a verba para um total de 1.989 milhões €, considerando o PES”.
- Reforço nos acordos de cooperação, alcançando uma despesa de 1,2 mil milhões € anuais na comparticipação de, cerca de, 460.000 lugares em respostas sociais. Esse reforço é justificado, em parte, pela atualização dos montantes de comparticipação da segurança social, no âmbito dos acordos de cooperação em vigor, no “valor de 5.1% no triénio, ou seja, mais 61 milhões €”.
- Criação do Fundo de Restruturação do Sector Solidário (FRSS) destinado à reestruturação e a sustentabilidade económica e financeira das instituições com um montante de financiamento público de, cerca de, 33,5 milhões €.
Tendo por base o documento do Governo com o balanço da sua governação, não há dúvida que, tal como o Ministro da Solidariedade Emprego e Segurança Social afirmou, o Governo reforçou o orçamento da ação social com o objetivo de “capacitar as instituições sociais para estas poderem servir as pessoas”.
Mas apesar de, em apenas 4 anos e num contexto de medidas de austeridade bastante penalizadoras para os portugueses, se ter assistido a um aumento de 440 milhões € (+28,4%) na despesa com ação social, de acordo com as declarações supracitadas, poder-se-á afirmar que esta opção política evitou uma “rutura social”? Foi a estratégia adequada? O que entende o ministro por “rutura social”? O que aconteceu neste período em termos de risco de pobreza e de desigualdades?
Analisando os principais indicadores de medida da pobreza verifica-se que a Taxa de Pobreza Ancorada aumentou 6,3 p.p. entre 2010 e 2013, estando em situação de pobreza 25,9% dos portugueses, ou seja, 2,7 milhões de portugueses em 2013. Em apenas um ano, entre 2012 e 2013, assistiu-se a um aumento de 110 mil portugueses em risco de pobreza e em 2 anos (2011-2013), foram mais 450 mil portugueses nestas condições.
Considerando o conceito de pobreza ancorada, as crianças são o grupo mais afetado pelo risco de pobreza: a taxa de risco nas crianças aumentou 7,1 p.p. entre 2010 e 2013, elevando-se de 23,9% para 31,1%, a que corr3espondem 570 mil crianças em risco de pobreza em 2013. Face a 2011, são mais cerca de 80 mil crianças em risco de pobreza.
Uma outra abordagem possível na análise do risco de pobreza é a privação material. Em 2013 25,7% dos portugueses não tinham acesso a pelo menos três de nove itens relacionados com as necessidades económicas e de bens duráveis das famílias, mais 4,8 p.p do que em 2010.
Mas também os indicadores que medem a desigualdade na distribuição de rendimentos se degradaram nos últimos anos. Em 2013 os 10% dos portugueses mais ricos tinham 11,1 vezes mais rendimentos do que os 10 dos portugueses mais pobres (uma relação que em 2009 era de 9,2), o que significa que os rendimentos da população “mais rica” são 11,1 vezes superior aos rendimentos da população “mais pobre” (Rácio S90/S10).
O aumento da despesa com ação social em 440 milhões, entre 2011 e 2015, não contribuiu para uma diminuição do risco de pobreza em Portugal, nem conseguiu impedir o seu agravamento, assistindo-se inclusivamente a um aumento da desigualdade na distribuição de rendimentos. O gráfico seguinte demonstra que, apesar do aumento da despesa com ação social no período em análise, o Risco de Pobreza aumentou.
A estratégia do Governo foi aumentar a transferência para as instituições sociais, principalmente na parcela de comparticipação pública para o funcionamento das respostas sociais e apostar numa resposta social em particular, a Cantina Social, tornando-se numa “bandeira”. Nos últimos 4 anos, uma parte do aumento da despesa com ação social dirigiu-se para a criação de cantinas sociais as quais, de acordo com o documento “4 anos de credibilidade e mudança”, passaram durante os últimos 4 anos, de 62 para 842 (com um aumento de 2 milhões € para 50 milhões €).
A cantina social foi transformada pelo Governo “na” resposta destinada às situações de dificuldade financeira mais urgentes. Contudo, e para além de um conjunto de dúvidas relacionadas com a implementação e gestão desta resposta, nomeadamente sobre os critérios de seleção dos utentes e das próprias instituições sociais ou sobre a monitorização e acompanhamento das refeições efetivamente fornecidas por parte da segurança social, uma das principais questões em torno desta medida é a opção do Governo pela mesma, em detrimento de prestações sociais de solidariedade, de combate à pobreza e atribuídas mediante condição de recursos, como o Rendimento Social de Inserção (RSI) ou o Complemento Solidário para Idosos (CSI).
No Memorando inicial, de maio de 2011, não constava nenhuma medida de austeridade sobre prestações sociais de solidariedade. Mas isso não impediu o Governo de alterar, ao longo dos últimos 4 anos, as regras de atribuição do RSI e do CSI e de diminuiu os seus valores de referência, por pura opção ideológica. Entre junho de 2011 e junho de 2015, perderam a prestação de RSI mais de 110.000 portugueses e perderam a prestação de CSI mais de 68.000 idosos de entre os mais pobres.
Entre 2011 e 2015 estas duas prestações sociais (RSI e CSI) que visam assegurar um mínimo de subsistência aos portugueses mais pobres sofreram um corte de quase 200 milhões €. Perderam estas duas prestações quase 180.000 portugueses.
No mesmo período, aumentou a despesa com Ação Social, em 440 milhões €.
Estamos perante duas opções ideológicas deste Governo, que tiveram como consequência um aumento do risco de pobreza e da desigualdade de rendimento!
As medidas de ação social não são “concorrentes” com as prestações sociais de solidariedade social ou de proteção familiar, são sim complementares. Este foi o erro do Governo! Medidas que visam uma proteção imediata e urgente a famílias que se encontrem em situação economicamente muito difícil devem existir se necessário, mas devem coexistir e não substituir as prestações sociais de solidariedade que visam o combate à pobreza extrema.
Em apenas dois anos assistimos à quebra de um ciclo e a uma inversão preocupante da tendência de diminuição do risco de pobreza e de diminuição das desigualdades de rendimentos que vinha sendo alcançada durante a década anterior! São agora mais os portugueses em risco de pobreza e é agora maior a desigualdade na distribuição de rendimento!
Precisaríamos de ter assistido a um aumento, ainda maior, da pobreza e das desigualdades de rendimentos em Portugal, para que o Governo reconhecesse que muitos portugueses se encontram em situação de rutura social, e que a sua estratégia falhou?
Referências Bibliográficas:
Governo de Portugal, 2015, “4 anos de credibilidade e mudança”
INE, 2014, “Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento”
Joaquim, Cláudia, 2015. “Proteção social, terceiro setor e equipamentos sociais: Que modelo para Portugal?”, #3 Cadernos do Observatório, CES-Observatório sobre crises e alternativas, Universidade de Coimbra
Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, relatórios anuais. “Carta Social – Rede de Serviços e Equipamentos Sociais”, GEP – MTSS
Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, relatórios anuais. “Conta da Segurança Social”, IGFSS – MTSS
Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, 2006. “Respostas Sociais, Nomenclaturas e Conceitos”, Direcção-Geral da Segurança Social, da Família e da Criança – MTSS
Legislação Diversa