Artigo de Fernando Marques.
(inicialmente publicado na Revista Seara Nova, Nº 1732 – Verão 2015 http://www.searanova.publ.pt/pt/1732/nacional/579/Pol%C3%ADticas-sociais-direitos-mercados-e-assistencialismo.htm)
As políticas sociais foram profundamente alteradas no decurso dos últimos anos no contexto dos programas de estabilidade e de crescimento, do Memorando de Entendimento e das suas revisões e do período pós-troica. Mais do que mudanças abruptas estamos perante um processo de progressivo esvaziamento de funções sociais do Estado a favor de esquemas privados, para os que podem, e da caridade, para os que não podem. Neste artigo faz-se uma reflexão sobre os principais problemas sociais e sobre o sentido das múltiplas alterações nas áreas sociais.
A natureza dos principais problemas sociais
O primeiro grande problema respeita a saber como garantir um adequado nível de vida a uma elevada população pensionista e reformada. Infelizmente, este tema está quase excluído do debate público o qual está centrado na sustentabilidade financeira das pensões, sem que se saiba claramente o que tal significa. A verdade é que a pensão média é baixa (embora com profundas diferenças entre o sector privado e o sector público, em parte explicadas pelos salários declarados e pelas carreiras contributivas) e que o principal meio de vida de uma parte significativa dos idosos depende de pensões mínimas ou de baixas pensões. Apesar de progressos feitos no passado quanto às pensões mais baixas, estima-se que perto de 70% desta população tem pensões cujo valor não excede o IAS (Indexante dos Apoios Sociais), isto é cerca de 420 euros, ou que, no âmbito da CGA, não excede os 500 euros. Neste contexto, é no mínimo deprimente olhar para posições de algumas forças políticas onde a vertente da adequação das pensões é ignorada e onde se repete até à exaustão o termo da sustentabilidade (ou equivalente).
Pensão média e incidência das muito baixas pensões (2013)
Mil |
Pensão média € |
Pensões até IAS (%) |
||
SECTOR PRIVADO |
||||
– Previdencial |
2127 |
452 |
75 |
|
– Agrícolas (RESSAA) e não contributivo |
291 |
223 |
100 |
|
SECTOR PÚBLICO |
462 |
1281 |
21 |
Fonte: Conta da Segurança Social e CGA
Notas: Previdencial: pensões de invalidez e velhice do regime geral; RESSAA e nos regimes não contributivos ou equiparados: pensões mínimas; S. público (CGA): pensões até 500 euros de aposentação e de reforma. Os dados referem-se a 31 de Dezembro.
Uma parte dos reformados e pensionistas é pobre. O chamado risco de pobreza e de exclusão social atingiu 27,5% da população em 2013. A situação portuguesa é particularmente complexa uma vez que, por um lado, o problema da pobreza dos idosos não está ultrapassado e, por outro, há mais pessoas pobres em idade activa, como indica a taxa de 10,7% para os empregados (10,3% em 2010) e de 40,5% para os desempregados (36% em 2010).
A perda de estatuto social dos desempregados constitui um aspeto central na actual realidade social. Houve revisões sucessivas da legislação sobre a protecção social no desemprego desde meados da década passada, com preocupações que nem sempre coincidiram. Tomaram-se medidas de reforço da proteção social, entre 2009 e meados de 2010, com vista a melhorar a procura interna para estimular a economia e assim combater os efeitos da recessão global. Mas estas medidas foram depois revogadas, sendo seguidas pela restrição nas condições de acesso às prestações e pela redução do seu montante e do seu tempo de atribuição. Pretendeu-se que assim se obteria um rápido regresso dos desempregados a um mercado de trabalho onde supostamente teriam emprego.
Este rápido regresso não se materializou e o desemprego de longa duração cresceu em quase todos os anos do período. Uma vez no desemprego, os desempregados têm grandes dificuldades de se reinserirem no mercado de trabalho, sobretudo em empregos com qualificações e condições equiparáveis à dos empregos que perderam. Em 2014 o desemprego de longa duração (12 e mais meses) atinge quase 2 em cada 3 desempregados (65,5%). O aumento da duração do desemprego tem pesados custos incluindo a erosão das qualificações, o risco de pobreza e, como se irá referir, a diminuição da protecção social.
A situação no mercado de trabalho é muito complexa não podendo ser avaliada a partir somente da taxa de desemprego. Tem-se uma melhor compreensão com um painel de indicadores representativos da evolução do emprego e da não utilização (ou insuficiente utilização) de força de trabalho disponível (ver quadro). Estes dados são reveladores de quatro aspetos essenciais. Primeiro, a destruição massiva de postos de trabalho. Segundo, o aumento do desemprego seguido pela sua contração a partir de 2014, a qual se deve menos à melhoria económica (um crescimento anémico de 0,9% neste ano) e mais à combinação de factores como a gestão social do desemprego, o desencorajamento, o subemprego e a emigração. Terceiro, o peso avassalador do desemprego de longa duração. Quarto, a retoma da emigração em grande escala. Todos estes aspetos têm profundas consequências na segurança social e na protecção social, incluindo no seu financiamento.
Indicadores de emprego e desemprego
2009 |
2010 |
2011 |
2012 |
2013 |
2014 |
2015 |
||
Emprego (% variação) |
-2,9 |
-1,4 |
-3,2 |
-4,1 |
-2,6 |
1,6 |
-0,3 |
|
Taxa de desemprego (%) |
9,4 |
10,8 |
12,7 |
15,5 |
16,2 |
13,9 |
13,7 |
|
Inativos disponíveis (% popul. activa) |
1,3 |
1,3 |
3,1 |
4,3 |
5,2 |
5,2 |
4,9 |
|
Desempregados ocupados (% popul. activa) |
1,4 |
2,5 |
3,6 |
2,9 |
||||
Emigração (% popul. activa) |
1,9 |
2,3 |
2,4 |
2,6 |
||||
Subemprego a tempo parcial (% popul. activa) |
1,7 |
1,8 |
3,9 |
4,7 |
4,9 |
4,7 |
4,9 |
|
Desemprego de longa duração (% total) |
46,5 |
54,1 |
53,2 |
54,2 |
62,1 |
65,5 |
64,5 |
Fonte: INE (Inquérito ao Emprego) e IEFP. Os dados de 2015 respeitam ao 1º trimestre.
A crise tem pois um impacto terrível no mercado de trabalho, incluindo o quase desmantelamento da contratação colectiva (num processo que sendo anterior à troica foi por esta agravado), a facilitação dos despedimentos e, como se argumenta em seguida, o enfraquecimento das políticas sociais. Este choque ocorre numa sociedade que já tinha rendimentos baixos e cavadas desigualdades sociais. Com a crise a situação agudizou-se. Recorde-se que um terço dos trabalhadores por conta de outrem recebeu em 2014 um salário líquido até 600 euros. Se tivermos em conta que na periferia dos grandes centros urbanos é difícil obter uma casa com uma renda mensal inferior a 300 euros, sobram outros 300 para todas as outras despesas. Recorde-se também que, em Outubro de 2014, quase 20% dos trabalhadores era abrangida pelo salário mínimo (25% nas mulheres).
A orientação das políticas sociais
Com a política de austeridade procedeu-se a cortes na despesa social. A despesa dirigida a garantir direitos básicos, incluindo a prevenção e reparação da carência e desigualdade socioeconómica, foi de imediato atingida, bastando observar a quebra na evolução das transferências do Orçamento de Estado (OE) para o cumprimento da Lei de Bases da Segurança Social (LBSS). As políticas sociais não pretenderam sequer “compensar” os mais pobres e vulneráveis. O que subjaz aos cortes, realizados ou em perspectiva: uma redução da protecção, segurança e solidariedade sociais, por alegadamente se estar em situação de emergência financeira, ou uma mudança no modelo de políticas sociais? A análise do que se tem passado na segurança social fornece, a nosso ver, respostas esclarecedoras.
O acesso às prestações foi restringido pondo-se em causa o princípio da universalidade da segurança social, que a Constituição consagra. A publicação do decreto-lei nº 70/2010 de 16 de Junho, sobre o acesso a prestações e apoios não contributivos, constituiu um marco essencial. O aperto nas regras de determinação dos rendimentos, composição do agregado familiar e capitação dos rendimentos do agregado familiar para a verificação das condições de recursos originou o rápido declínio dos beneficiários no âmbito do Sistema de Protecção Social de Cidadania, onde se incluem prestações como o abono de família a crianças e jovens, o rendimento social de inserção e o subsídio social de desemprego. Em Outubro de 2010 foram eliminados (decreto-lei nº 116/2010 de 22.10) os escalões mais elevados do abono de família (o 4º e o 5º, com 405 mil titulares em 2009). Dizia-se no preâmbulo: “Com as medidas adotadas mantém-se ainda um elevado nível de protecção social, sobretudo em relação àqueles que mais necessitam, e que se situam nos escalões mais baixos”. Note-se o termo “ainda” e o rompimento com o princípio universalista nesta prestação.
Esta orientação veio a ser alargada e reforçada nos anos da troica. No domínio da protecção social no desemprego, o acesso às prestações foi limitado através de legislação publicada em 2010 e 2012, apesar de se ter diminuído o período de garantia do subsídio de desemprego. As alterações provocaram a rápida diminuição do número de desempregados a receber subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego (menos de um em cada dois) e a redução do período de atribuição. O valor máximo da prestação foi limitado a 2,5 IAS – a natureza contributiva da prestação foi ainda mais enfraquecida – e procedeu-se ao corte de 10% no subsídio de desemprego após 180 dias de concessão. Vale a pena sublinhar “natureza contributiva” porque muitas vezes se usa e abusa do argumento de que são os “nossos impostos” que pagam os subsídios aos desempregados, o que está muito longe de ser verdadeiro.
O discurso da troica foi o de que tal era necessário para que os desempregados regressassem rapidamente ao mercado de trabalho, como se a destruição de postos de trabalho com a política de austeridade fosse uma invenção malévola. Não estamos longe do discurso dos que nos anos 30 do século passado diziam que o subsídio de desemprego era responsável pelo desemprego.
A evolução no sentido da redução da abrangência e/ou dos montantes de prestações, contributivas e não contributivas, verificou-se noutras prestações. Por exemplo, o subsídio por morte passou a prestação de valor fixo e a ser limitada, primeiro a seis IAS e depois a 3.
No domínio das pensões, o objetivo da sustentabilidade financeira sobrepõe-se agora a todos os outros, na linha, aliás, do que se defende a nível da UE. Aparentemente não é assim porque, por exemplo, o Livro Branco das pensões põe no mesmo plano a sustentabilidade e a adequação. As pessoas mais velhas devem ter um rendimento que permita um nível de vida digno e gozarem de independência económica. Mas, como salienta Clara Murteira, a adequação é relegada para a esfera dos mercados incluindo o recurso a produtos financeiros por via de poupanças individuais.
Salienta ainda como a segurança social passou a ser considerada um obstáculo pelas autoridades europeias e as contribuições sociais a serem encaradas como inimigas da competitividade porque aumentam os custos com o trabalho. De facto, a pressão europeia para reformar os sistemas de pensões nacionais é hoje mais forte e mais efetiva no contexto da nova governação económica e do Tratado Orçamental que emergiram com a conversão da UE à política de austeridade. Há quem, piedosamente, argumente com a compensação da segurança social por receitas de impostos, esquecendo as consequências de se tornar o orçamento da segurança social contributiva dependente do OE e de se quebrar, ou pelo menos de se enfraquecer, a relação salário-contribuição-prestação, o que objetivamente favorece o caminho já em curso para o assistencialismo. A diminuição nas transferências do OE para o financiamento do Sistema de Protecção Social de Cidadania deveria servir de alerta.
As respostas na área da ação social pública foram quase totalmente privatizadas, transferidas que foram para as Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) e para os privados. Os acordos de cooperação com IPSS representam 75% da despesa corrente de ação social realizada em 2013 (o que não esgota toda a despesa relacionada com as IPSS), enquanto as respostas públicas por via dos estabelecimentos integrados, que estão na dependência do Instituto da Segurança Social, têm uma participação de 3% (5,8% em 2009 e 7,1% em 2005). Esta diminuta participação é menos uma rutura do que o reforço numa linha de continuidade com uma política de progressivo esvaziamento de respostas sociais públicas traduzindo uma desresponsabilização do Estado em funções sociais. Porquê esta transferência? Porque, retórica à parte, “se trata de uma resposta mais barata, mais precária e com um menos encargo financeiro para o Estado”.
A despesa com a ação social teve um aumento nominal de 2,4% entre 2009 e 2013, sendo também afetada pela política de austeridade já que os preços no consumidor cresceram num valor superior neste período. Vale a pena fazer o confronto com outras áreas de despesa para se perceber o sentido das políticas que vêm a ser seguidas. Por exemplo, nas prestações familiares a queda foi de quase 30% (passou de um índice 100 em 2009 para 70,9 em 2013); e no rendimento social de inserção foi ainda superior, de quase 38% (de 100 em 2009 para 62,1 em 2013).
Tão importante como a dimensão dos cortes há que refletir sobre esta reorientação da despesa. O governo, que criou em Agosto de 2011 o Programa de Emergência Social (PES) focado na carência alimentar e na delegação de funções nas IPSS, diminuiu drasticamente a despesa com prestações sociais de apoio às famílias, como o abono de família, e o âmbito e eficácia de prestações dirigidas ao combate à pobreza: os beneficiários do rendimento social de inserção em 2015 caíram em mais de metade face a 2009 e os do Complemento Solidário para Idosos – uma prestação que tem por objetivo combater a pobreza e a exclusão social da população mais idosa – em cerca de um terço em relação a 2013. Ou seja, estamos perante um processo de substituição de prestações atribuídas na base de direitos por apoios de natureza assistencialista.
O PES é mais do que um programa enquadrado na ação social. Uma lógica de bem-estar, de qualidade de vida, de igualdade real, de direitos básicos e de coesão social (artigos 9º da Constituição e 26º da LBSS) cede o lugar à lógica da carência.
Em suma, e parafraseando Alain Supiot, estamos a percorrer um caminho que nos leva aos seguros e à caridade e ao aniquilamento da solidariedade.