Para uma convergência à esquerda

Artigo de Alfredo Barroso.


(Texto que serviu de base à intervenção no debate “Que passos para um Pólo de Esquerda?” do Fórum Socialismo 2015, Porto, 30 de Agosto de 2015, http://www.esquerda.net/artigo/para-uma-convergencia-esquerda/38362)

1. A pergunta é: que passos para a criação de um pólo à esquerda, contra a bipolarização, o rotativismo e a alternância sem alternativas?

E a resposta mais simples que me ocorre é esta: antes de mais, é necessário caminhar no sentido da convergência de ideias e de objetivos programáticos, repudiando liminarmente qualquer tentação hegemónica que ponha em causa a autonomia dos partidos, movimentos ou grupos que aceitem integrar esse «pólo à esquerda».

Há pouco mais de um ano, questionei a nova direção do PS sobre alguns «passos» políticos que me parecem essenciais para convergir e governar à esquerda. Saliento apenas três:

a) Contestar e repudiar o Tratado para a Estabilidade, a Coordenação e a Governação na União Económica e Monetária – mais conhecido pela designação Tratado Orçamental – verdadeiro pacto de austeridade perpétua contra a democracia. Este pacto imposto pela Alemanha e feito à margem dos Tratados Europeus, é na realidade um acordo intergovernamental e bastou ser ratificado por 12 Estados membros da UE para entrar em vigor. O PS liderado por António José Seguro ratificou-o, sem quaisquer problemas de consciência. E o PS liderado por António Costa afirma que as normas e regras do Tratado são para cumprir e ser aplicadas na íntegra, com vista a alcançar (cito) «o quase equilíbrio estrutural das contas públicas e a redução do endividamento». Mais austeridade à vista, portanto.

(Recordo o que escreveu Octávio Teixeira em Abril de 2012: «Este é um Tratado estúpido que consagra a nível jurídico mais elevado o estúpido Pacto de Estabilidade e Crescimento. Ao impor um défice estrutural máximo de 0,5% com a obrigatoriedade de “reformas estruturais” se (ele for) ultrapassado, bem como a redução anual de 5% da dívida e a submissão da emissão de dívida a parecer prévio da Comissão (Europeia), consagra a inevitabilidade de redução de despesas públicas necessárias ao crescimento a longo prazo, a impossibilidade de financiar investimento com recurso ao crédito e a diminuição das despesas de natureza social»);

b) – Defender a renegociação e reestruturação da dívida pública. Também aqui a resposta foi muito clara. A actual direcção do PS afasta qualquer propósito de renegociar e reestruturar a dívida pública do país. Nada de incomodar os credores e suscitar a ira da Comissão Europeia e do Governo de coligação alemão (CDU-SPD). António Costa já disse que não quer «levar com a porta na cara», em Bruxelas e em Berlim;

c) – Avaliar a possibilidade de reverter algumas das privatizações realizadas pelo governo de direita PPD-CDS, que desfalcaram o Estado de importantes empresas estratégicas. Aqui, a resposta foi ao mesmo tempo dececionante e ambígua. Um futuro governo do PS irá proceder a mais privatizações, de acordo com o critério resultante da «clarificação do conceito de ‘sector estratégico nacional’». Até agora, porém, não há notícia de qualquer clarificação do conceito – e é altamente improvável que ele venha a abranger qualquer das empresas estratégicas já privatizadas pelo governo de direita.

Devo acrescentar que, em relação a duas outras questões que coloquei – sobre a definição de uma política de alianças e sobre o combate à corrupção e à promiscuidade entre a política e os negócios – só recebi respostas evasivas e nenhuma iniciativa prevista, sobretudo no segundo caso. Em amigos influentes não se toca…

2. Decididamente, o secretário-geral e a direção do PS partilham a visão do mundo que é apanágio da classe dirigente que governa o país e a Europa:uma classe dirigente desprovida de consciência histórica, politicamente cínica e egoísta, educada na superstição da economia e das finanças e votada ao culto dos números e quantificações.

Tal como o PS de António José Seguro e antecessores, o PS de António Costa não parece disposto a romper com a infernal lógica neoliberal que continua a empobrecer os países do sul da Europa, a degradar a democracia e a destruir o Estado social.

Ora, sem ruturas – e sobretudo sem planos B – a chamada «esquerda de governo» claudicará mais uma vez, se regressar ao poder, perante as forças não legitimadas democraticamente que continuam a influenciar e pressionar os governos e a condicionar as vidas de muitos milhões de europeus.

(Aliás, quando penso no«bloco central», no chamado «arco da governação», na bipolarização e no rotativismo, ocorre-me muitas vezes a famosa frase do Príncipe de Salina em «O Leopardo», de Lampedusa e de Visconti: «É preciso que alguma coisa mude para que tudo continue na mesma»).

Parece-me bem claro que, para aplicar um programa de ruptura, é preciso ter a coragem de tomar medidas unilaterais, mesmo que sejam contrárias aos tratados e directivas europeias.

E quanto à eventual saída do euro, se é certo que não pode ser considerada um projecto político em si mesma, recusar à partida essa possibilidade seria, como o demonstra o exemplo da Grécia e do Syriza, aceitar uma condenação à paralisia política.

Como afirmou Joseph Stiglitz uma entrevista recente: «Penso que a situação vai piorar, se não houver uma rutura».

3. Em todo o caso, convém não ignorar que os caminhos da esquerda estão hoje cheios de obstáculos, são perigosos e envolvem muitos riscos.

O exemplo do que sucedeu à Grécia e ao Syrisa constitui um sério aviso à navegação. Os «donos» da União Europeia, designadamente Bruxelas e Berlim, não toleram qualquer ato de rebeldia que ponha em causa o seu poder. Quem infringir as regras por eles impostas será severamente punido.

Aliás, um dos fenómenos mais preocupantes que afetam as democracias contemporâneas é, precisamente, a usurpação do poder democrático legítimo pelo poder ilegítimo exercido pelas empresas transnacionais (ETN); os mercados financeiros; as agências de rating; os lobbies, mega-lobbies e outros grupos de pressão; e por uma elite tecnocrática de gestores, banqueiros e advogados ao serviço do capital. Agindo coordenadamente, estes poderes não legitimados democraticamente definem e condicionam as políticas, controlam e influenciam os políticos, dominam as instituições europeias (sobretudo a Comissão Europeia) e vários organismos internacionais(como o FMI ou a OMC). Paradoxalmente, este poder ilegítimo tem tirado partido da crise que ele próprio provocou para se impor e consolidar.

(Como afirmou em 1991 o banqueiro David Rockfeller, justificando a falta de transparência do grupo de Bildeberg: «Teria sido impossível desenvolvermos os nossos planos para o mundo se tivéssemos estado sujeitos a exposição pública durante todos estes anos. Mas o mundo é agora mais sofisticado e está mais preparado para se submeter a um governo mundial. A soberania supranacional de uma elite intelectual e de banqueiros mundiais é seguramente preferível à autodeterminação nacional praticada nos séculos passados»).

Ora, a legitimidade é indissociável da democracia, e as suas instituições e poderes representativos não podem ser usurpados por empresas cujo único objetivo é o lucro, nem pelos seus diversos agentes e representantes que se arrogam o exercício de poderes outrora reservados aos eleitos. Estamos perante uma forma sorrateira e subreptícia de poder ilegítimo,de tal maneira difícil de identificar com rigor que nem sequer tem ainda nome próprio. A ensaísta e ativista política Susan George chama-lhe «corporativocracia», qualificando assim esse poder ilegítimo que não decorre de decisões oficiais e explícitas, e que se vai instalando progressiva e imperceptívelmente, muitas vezes sem ser, sequer, considerada como pressão ou usurpação por aqueles que, de boa ou má vontade, a ele acabam por submeter-se.

4. É sobre tudo isto que importa esclarecer os cidadãos-eleitores, explicando com simplicidade e clareza quais são as condições que definem um poder democrático legítimo, a saber:

– eleições livres e justas dos representantes do povo;

– governo constitucional;

– Estado de Direito;

– igualdade perante a lei;

– separação dos poderes executivo, legislativo e judicial;

– mecanismos de controlo e contrapoderes;

– separação entre a Igreja e o Estado.

– direitos e liberdades individuais e coletivas, nomeadamente; a liberdade de expressão; a liberdade de opinião; a liberdade de Imprensa: e a liberdade de culto.

Como afirmou recentemente o sociólogo Pierre Rosanvallon, numa entrevista ao semanário francês «L’OBS»:

«O nossos regimes podem continuar a dizer que são democráticos, mas a verdade é que já não somos governados democraticamente. É este o grande hiato que alimenta o desencanto e a angústia contemporâneas».

Hoje, os cidadãos-eleitores são apenas soberanos por um dia: o dia das eleições. Passado o momento do voto e, com ele, a sedução e as promessas eleitorais, os cidadãos-eleitores constatam que o poder político se afasta para longe deles e que o interesse geral passa a balançar ao sabor dos protestos e pressões corporativas de toda a ordem.

O divórcio dramático entre o momento eleitoral e o momento governamental não pára de acentuar-se. E é justamente a distância abissal que separa a linguagem de campanha eleitoral da linguagem governamental que produz efeitos devastadores no eleitorado, contribuindo para desvalorizar cada vez mais a atividade política e encorajar a abstenção.

A velha questão do défice de representação democrática continua a ser de grande atualidade, mas não pode continuar a escamotear a questão do mau governo, que se tornou crucial quando constatamos que o poder executivo tem vindo a impor-se progressivamente a todos os outros, nomeadamente ao poder legislativo.

É o deslizamento para uma predominância cada vez maior do executivo que explica que os responsáveis políticos se tenham desligado quase por completo da sociedade e se tenham reduzido à sua condição de meros profissionais da política, tornando-se apenas homens e mulheres do aparelho dos partidos a que pertencem.

A sua «realidade» passou a ser o interior do «mundo político» em que se movem, mais preocupados com a evolução das diversas fações, com os congressos e com as lutas de aparelho que determinam a relação de forças da qual sairão os governantes.

A atividade dos partidos políticos está, assim, cada vez mais reduzida à mera gestão dos calendários eleitorais.

5. A Europa é hoje palco de uma grande ofensiva contra o Estado-Providência e contra o modelo social europeu, com o objetivo de derrogar tudo o que foi conquistado pelos trabalhadores desde há 60 ou 70 anos.

Os neoliberais odeiam este modelo social, porque consiste em taxar os ricos e as grandes empresas – ou seja, os que, segundo eles, pretensamente criaram toda a riqueza – para redistribuir uma parte dessa riqueza por pessoas que não a merecem.

Os pobres, desempregados ou assalariados, não são considerados parceiros na criação de valor, mas sim parasitas. Segundo o dogma neoliberal, apenas o capital, com exclusão do trabalho e da natureza, é criador de valor e, portanto, de postos de trabalho. Só os acionistas e os quadros dirigentes são criadores de valor. Por isso, é natural que sejam eles as principais partes interessadas na tomada de medidas ou decisões políticas.

O fanatismo dos neoliberais é tal que, apesar do balanço assustador das suas políticas, insistem em aplicar as suas teorias. Tal como numa religião, os grandes sacerdotes do neoliberalismo oficiam em Bruxelas, os seus missionários reúnem-se em Davos, os seus teólogos e pregadores estão infiltrados nos think tanks e os seus mais sectários seguidores ocupam inumeráveis ministérios e conselhos de administração.

É contra esta «tropa fandanga» e os partidos políticos que ela controla que a esquerda tem que se bater e, por isso mesmo, tem de convergir – e não apenas em Portugal, mas na Europa, a começar pela do Sul. É um combate desigual e muito difícil. Exige capacidade de esclarecimento e de persuasão dos cidadãos-eleitores. Mas também uma clara vontade de aceder ao poder pela via democrática, com um programa político claro, corajoso e eficaz.

Como se costuma dizer, faço votos!