«O Sobressalto Grego»

Artigo de Pedro Caldeira Rodrigues.


(inicialmente publicado em http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1069)

Na apresentação em Lisboa do livro «O Sobressalto Grego», o autor, Pedro Caldeira Rodrigues, dá-nos uma antevisão de um livro que não podia ser mais actual. Historiador e jornalista, especialista nos Balcãs, convida desta vez os leitores a alargar os horizontes sobre o que está em jogo na crise grega.

No dia 26 de Janeiro de 2015, um dia após a vitória eleitoral do SYRIZA nas eleições legislativas antecipadas que decorreram na Grécia, o spot da rádio do partido continuava a emitir os mesmos acordes da Internacional ao som de um piano.

Um som com o qual muitos gregos já estavam familiarizados, mas que assumia um novo significado após o «partido da esquerda radical», na sua precisa designação, ter ficado a apenas dois deputados da maioria absoluta e se preparar para o «assalto» ao poder.

Entrava-se num terreno desconhecido. Estaria a Grécia a caminho de um novo género de socialismo alternativo em pleno século XXI? Liderada por uma jovem vanguarda que iria confirmar que «outro mundo é possível», impulsionar um vento revolucionário que iria percorrer o continente e inspirar outros povos da periferia europeia?

Para as gerações da Grécia envolvidas na resistência à ditadura dos coronéis, entre 1967 e 1974 – que se tinham «acomodado» com o regresso da democracia mas optado por regressar ao activismo político na sequência da «crise da dívida» a partir de 2009/2010 –, foi um momento exaltante.

Como o foi para a maioria dos jovens, 60% estatisticamente desempregados e que tinham estado na primeira linha da contestação social e dos intensos confrontos com a polícia, reiniciados em Dezembro de 2008.

«Esperávamos por este momento desde 1944!», foi dito no dia da vitória. Para os homens e mulheres que se identificavam com a esquerda grega, com o penoso e contraditório percurso da esquerda grega, vivia-se uma espécie de revolução.

Não um «assalto ao Palácio de inverno», justificado em 7 de Novembro de 1917 porque o voto era, então, apenas uma arma dos privilegiados. Daí, toda a legitimidade do «poder aos sovietes».

Agora, nesta Europa de inícios do século XXI, seria o sufrágio universal a determinar as alterações políticas, económicas e sociais, motivadas pelo amplo movimento de massas dos «indignados», desses 99% que estavam a ser despojados de quase tudo pelo 1% que continuava a acumular quase tudo.

Um movimento de transformação social liderado por uma alternativa política que por fim se sobrepunha às «esquerdas» tradicionais representados pelos partidos socialistas, ou sociais-democratas, e comunistas.

Nas ruas de Atenas, nessa noite de 25 de Janeiro, militantes internacionalistas vindos sobretudo de Itália e de Espanha erguiam o punho, agitavam bandeiras vermelhas e entoavam o Bella Ciao, a canção da resistência italiana, ou a Internacional.

Depois, no dia seguinte, o confronto com a realidade. Os novos líderes da Grécia, esses «rapazes sem gravata», e de formação marxista, tinham um sonho: terminar com a presença da Troika e dos seus programas de austeridade que tinham provocado uma «crise humana» no país, com o seu exército de pobres, desempregados, sem-abrigo, com as restrições aos serviços de saúde básicos, com o ataque às conquistas sociais penosamente alcançadas pelos assalariados durante décadas de combates.

Sabiam que a crise financeira se tinha transformado em crise das dívidas soberanas, pesando particularmente na dívida pública, e diziam não se poderia aceitar mais sacrifícios em nome do euro, um projecto disfuncional.

Renegociação da dívida pública, mais investimento público – com electricidade, medicina e transportes gratuitos para os sectores mais necessitados, ajuda alimentar para as 300 mil famílias que viviam no limiar da pobreza, redução dos impostos sobre os combustíveis –, aumento dos salários, em particular do salário mínimo, renacionalização de empresas, caso da companhia aérea Olympic Airlines, reabertura da radiotelevisão pública ERT, criação um novo banco de desenvolvimento sob controlo estatal, estas algumas das medidas prometidas. Poucas conseguiram, entretanto, ser concretizadas.

O SYRIZA ambicionava ainda alterar o «funcionamento desigual» da União Europeia, e da zona euro, através da democratização de instituições cada vez mais distantes e estranhas ao cidadão comum, fomentando uma «Primavera dos povos», a «união dos povos do Sul», para contrariar a «ditadura económica europeia imposta pelos poderosos», como dizia então Alexis Tsipras.

Aconteceu o que se sabe, ou que se começa a saber. De finais de Janeiro a inícios de Julho de 2015, um alucinante mas também apaixonante confronto político-ideológico entre os ministros-militantes anti-austeritários, que fizeram questão de se confrontar directamente com os representantes máximos dos credores prescindindo dos funcionários da Troika que muitas vezes «enviavam as ordens por email».

Tsipras, Varoufakis, Tsakalotos, versus Merkel, Schäuble, Dijsselbloem. Um desgastante embate que quase monopolizou durante meses seguidos todos os meios mediáticos, que com mais ou menos pudor se debruçavam sobre esta «nova Grécia».

Mas a Grécia estava só.

A animosidade atingiu o clímax em finais de Junho, quando terminou o prolongamento, por quatro meses, do programa acordado em Fevereiro e que já tinha implicado cedências de Atenas, em particular no sector bancário.

Mas a Grécia continuava a não receber um cêntimo desde Agosto de 2014 e o cerco apertava-se, enquanto permaneciam os rumores sobre um eventual Plano B congeminado por Atenas e que tentaria minimizar o impacto de uma eventual saída da zona euro.

Tsipras anunciou então, na madrugada de 27 de Junho, um referendo sobre o último acordo proposto pelos credores, considerado «humilhante», enquanto a Grécia entrava em incumprimento face ao FMI. O OXI, NÃO, confronta-se com o NAI, SIM, e a Grécia fractura-se.

Pela primeira vez na história das democracias europeias, uma consulta popular decorre com os bancos fechados, uma imposição definida por um investigador e historiador grego como a «utilização da arma absoluta», destinada a provocar medo e influir na decisão do eleitorado.

Os principais líderes europeus, também se imiscuem directamente na campanha, e dizem que uma vitória do NÃO implica a saída automática da zona euro. Na Grécia, os partidos do centro e da direita sentiam-se protegidos, e tinham como certa a vitória.

«O SYRIZA tem de ser afastado do poder!», defendia na sua secção «Leaders» o «insuspeito» semanário britânico The Economist nas vésperas do referendo. Nada de novo. Ainda antes das eleições de 25 de Janeiro, o governo alemão considerava quase «inevitável» o Grexit caso o SYRIZA vencesse as eleições, abandonasse a linha de rigor orçamental e deixasse de reembolsar as dívidas do país.

Terá razão outro economista na ribalta, Thomas Piketty, quando disse em entrevista ao semanário alemão Der Spiegel em Março que ao ser criada a zona euro, «criámos um monstro»?

E foi este «monstro» que os novos dirigentes gregos não conseguiram contrariar. Pouco mais de 24 horas após o referendo, a retumbante vitória do NÃO (cerca de 63%) convertia-se em SIM, em nome da permanência da Grécia na moeda única. Mas Tsipras permanecia popular, convocava a oposição em nome do «interesse nacional» e conseguia provocar a demissão do ex-primeiro-ministro direitista Antonis Samaras da liderança do principal partido da oposição.

O resultado do referendo surpreendeu os próprios dirigentes do SYRIZA. Diz-se que muitos apostavam na vitória do SIM para depois justificarem imediatas decisões políticas, como a convocação de eleições antecipadas, e com sondagens muito favoráveis.

Pelo contrário, e após 17 horas de negociações em Bruxelas, anunciou-se em 13 de Julho um novo resgate com os credores, agora quatro instituições, com um reforço da ingerência externa no país e novas medidas de austeridade, a troco de mais um avultado empréstimo.

Mas ninguém parece acreditar no seu sucesso, atendendo ao desastre social associado aos dois anteriores programas de resgate. O SYRIZA dividiu-se, perdeu a maioria absoluta no parlamento, e os seus partidos-irmãos na Europa, da Turquia à Irlanda, Escócia, Espanha ou Portugal, também conheciam dificuldades em justificar esta nova viragem. Falou-se de um «golpe de Estado».

Um novo e decisivo congresso do partido da esquerda radical já está convocado para Setembro. As suas conclusões serão determinantes para a permanência do actual governo de coligação ou a convocação de novas eleições antecipadas.

No rescaldo, as instituições europeias clamaram vitória. O ministro das Finanças eslovaco disse que o acordo de Bruxelas foi a «resposta à Primavera grega». E o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, interpretava o acordo como uma forma de «impedir o contágio político» motivado pela crise grega que «forneceu nova energia a grupos políticos de esquerda e de direita, criando uma atmosfera revolucionária a que a Europa não assistia desde 1968».

Mas as instituições europeias também não saíram imunes deste confronto. Neste aspecto, há um antes e um depois da cimeira do Eurogrupo de 12/13 de Julho.

A imagem da Alemanha, em particular, saiu penalizada. A Europa confrontou-se consigo própria e deu-se mal com a experiência. A Grécia pode ter saído humilhada, mas a elite europeia que controla as instituições também se ressentiu.

«O regresso do alemão feio», foi o título escolhido pelo ex-chefe da diplomacia de Berlim e ex-líder dos Verdes, Joschka Fischer, num artigo de opinião em finais de Julho.

«Num fim-de-semana, o governo alemão destruiu diversas décadas de diplomacia» através de um «catálogo de horrores destinados a humilhar a Grécia», escreveu na ocasião o semanário Der Spiegel.

«A reacção fria e abrupta do Governo alemão [às propostas gregas] foi indigna», considerou por sua vez o filósofo alemão Jürgen Habermas, ao referir-se «ao impacto mundial» suscitado pelo «comportamento brusco e teutónico» da chanceler Angela Merkel e do seu ministro das Finanças.

Mas a reacção mais surpreendente veio de onde menos se esperava, ou talvez não…

«Evitámos o pior [com o acordo de Bruxelas de 13 de Julho] não porque sejamos sábios, mas porque tínhamos medo. Foi o medo [de uma saída da Grécia da zona euro] que permitiu o acordo. (…) Existe de facto uma ruptura dos laços de solidariedade na Europa (…) e os velhos demónios, os ressentimentos nacionais contra os outros ainda permanecem vivos. (…) Os europeus não querem a Europa (…) e a construção europeia, nascida da vontade dos povos, converteu-se num projecto de elite, o que explica o abismo entre as opiniões públicas e a acção política».

Esta confissão do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, numa entrevista em 22 de Julho ao diário belga Le Soir reflete o impacto que a «crise grega» suscitou na hierarquia política europeia. Ainda sem qualquer consequência prática.

Quanto ao SYRIZA, tem sido aconselhado a promover uma «gestão prudente e honesta da derrota», e com apurado sentido de autocrítica.

No entanto, e como todos suspeitamos, toda esta história ainda não acabou.