Artigo de Sandra Ribeiro.
O título não fui eu que inventei. Foi literalmente sonegado do e-mail que um amigo me escreveu em jeito de desafio a propósito da recente alteração à lei do regime da Interrupção Voluntaria da Gravidez.
Mas também lhe poderia ter chamado “O regresso à submissão”, inspirando-me no mais recente livro de Michel Houllebecq, essa fábula crua e perturbante sobre o avançar do retrocesso civilizacional em nome do equilíbrio das balanças financeiras, do pleno emprego (masculino) e do aumento demográfico europeu, nem que seja com o sacrifício dos direitos humanos fundamentais, principalmente das mulheres.
Em 2007, por via de um referendo, os portugueses e as portuguesas votaram inequivocamente a favor da liberalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, durante as primeiras 10 semanas de gestação.
Em 2015, na reta final da legislatura, a maioria parlamentar, decidiu impor o pagamento de taxas moderadoras e obrigar a consultas de aconselhamento psicológico e social prévias à decisão de todas as mulheres que pretendam interromper voluntariamente uma gravidez, visando na prática, pura e simplesmente, complexificar e tornar moroso o processo de IVG, dificultando deliberadamente a resposta aos pedidos das mulheres junto do SNS, no período previsto na lei.
É revoltantemente ridículo que, depois da criação de um grupo de trabalho pelo PSD para estudar e debater soluções para promover a natalidade, depois da publicação do relatório “Por um Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade“, do qual constam 27 propostas de medidas, depois da elaboração de vários relatórios de várias Comissões Parlamentares sobre “Aprofundar a proteção das crianças, das famílias e promover a natalidade“, depois da audição parlamentar de dezenas de individualidades e entidades públicas, que apresentaram no seu conjunto centenas de propostas, depois da apresentação de várias propostas de lei por parte de todos os grupos parlamentares, a grande medida de promoção da natalidade aprovada durante a vigência do XIX Governo Constitucional seja tornar mais difícil o acesso à IVG, esperando com isso incrementar vertiginosamente os nascimentos em Portugal.
Para além da descarada manobra de tornar ineficiente um serviço público que até agora funcionava, esta alteração atinge em cheio a dignidade das mulheres, submetendo-as a um julgamento moral inadmissível num Estado de direito laico e moderno. Cobrar uma taxa moderadora a quem faz uma IVG e não cobrar essa taxa a todos os demais casos de interrupção de gravidez configura o pagamento de uma “multa”, e como se sabe, multa-se quem infringe as regras e merece censura social, pelo que, esta alteração legislativa é, efetivamente, uma forma de declarar legalmente a culpa destas mulheres.
As mulheres voltam assim, a ver cair sobre si, o espectro da culpabilização de fazerem amor sem ser com o objetivo último da reprodução, o espectro da culpa da sua alegada falta de decoro, o espectro da culpa de quererem adiar a maternidade para evitar serem discriminadas no mercado de trabalho, o espectro da culpa de quererem ser profissionalmente bem-sucedidas em detrimento do seu suposto papel de esposa e mãe de família. As mulheres são as principais culpadas pela diminuição da taxa de natalidade, ponto final! É o que se pode ler nas entrelinhas desta alteração legislativa.
Até ao final da década de 60 do século passado, Portugal era dos países europeus com mais elevada taxa de natalidade. Contudo, a democratização dos meios contracetivos, a institucionalização do planeamento familiar e o acesso generalizado à educação, muito rapidamente alterou esta realidade, e desde o início da década de 80, o limiar da reprodução de gerações (2,1 filhos) deixou de estar assegurado em Portugal.
Atualmente, praticamente em nenhum país da União Europeia a substituição de gerações está assegurada. Portugal não é, portanto, uma exceção.
De acordo com dados da OCDE, ao longo das últimas décadas, é possível observar que existe uma divisão clara entre dois grupos de países, em que aqueles que apresentam taxas de fertilidade mais elevadas são também os que apresentam taxas de emprego feminino mais elevadas. E, aqui, Portugal, surge como um país “outsider” desta tendência, na medida em que apesar da elevada taxa de participação de mulheres no mercado de trabalho, a taxa de fertilidade é particularmente baixa. Quais serão as razões para este fenómeno?
Apesar de existirem vários mecanismos de conciliação entre vida profissional e vida familiar previstos na lei, de igual forma para homens e mulheres, quem os usa, quase exclusivamente, são as mulheres. Os homens portugueses raramente solicitam trabalhar em flexibilidade de horário e embora partilhem cada vez mais as licenças parentais com as mães dos seus filhos, ainda assim, não chegam aos 25% face às mulheres que gozam licença. Se analisarmos quantos homens faltam ao emprego para prestar assistência à família a percentagem é quase nula, enquanto essa é a principal causa de absentismo feminino.
Se é certa que a instabilidade do mercado de trabalho e o ambiente de desconfiança na economia condicionam a decisão de ter filhos, não é menos certo que a dificuldade de conciliar vida profissional com a vida familiar, tem vindo a contribuir para o atraso na decisão de constituição de família, nomeadamente por parte das mulheres, sobre quem ainda recaí de uma forma geral, a maioria das responsabilidades domesticas e familiares. É sabido que muitas mulheres, receando serem prejudicadas no mercado de trabalho adiam a maternidade ou optam por não ter filhos, e este receio é efetivamente fundado, dado que todas as estatísticas demonstram claramente uma elevada incidência de não renovação de contratos a termo no caso de gravidez ou trabalhadoras com filhos pequenos, o mesmo acontecendo com a sua inclusão em despedimentos coletivos e processos de extinção de postos de trabalho.
Vários países, preocupados com a diminuição da taxa de natalidade têm vindo a adotar medidas públicas, nomeadamente de promoção da conciliação entre vida familiar e profissional, para homens e mulheres, e não apenas com incidência sobre as mulheres, com vista a inverter aquela tendência. São disso referencia a França e a Suécia, dois países que têm conseguido manter taxas de natalidade “relativamente altas”, havendo muito a aprender com as suas experiencias. Mas, infelizmente, toda a discussão sobre o tema realizada em Portugal no último pouco ou nada ligou a estes bons exemplos, acabando por ser mais uma oportunidade perdida de se ter criado um regime coeso de promoção da natalidade em Portugal, que deveria ter passado pela assunção de um compromisso social, envolvendo os parceiros sociais e os diversos partidos, para uma estratégia concertada e continuada.
Está mais do que estudado e comprovado que existem 3 tipos de políticas públicas de apoio à família com potenciais efeitos sobre a taxa de natalidade:
- a) Aposta em serviços de apoio à infância, serviços pré-escolares e prolongamentos escolares;
- b) Pagamento de prestações pecuniárias (subsídios de natalidade, parentalidade e infância/abono de família e subsídios de apoio à educação);
e
- c) Isenções ou reduções contributivas e/ou reduções fiscais para famílias e para empresas que promovem medidas de conciliação nas suas organizações.
De acordo com os dados apresentados em vários relatórios da OCDE, observa-se que os melhores resultados são obtidos através do mix de politicas publicas de apoio à família que aumentam a confiança de quem quer ter filhos, designadamente: alargamento de licenças parentais partilháveis remuneradas mas não transferíveis; reforço das redes de serviços de apoio à infância de boa qualidade e a preços razoáveis; e, benefícios fiscais para famílias e para empresas que promovam a conciliação.
Acreditando que ainda estamos em tempo de evitar que o amanhã seja um regresso ao pior dos passados e que o abominável hoje é passível de mudança, é fundamental a adoção de um conjunto coordenado de políticas públicas que tenham em consideração, em simultâneo e em sinergia, diversos fatores, como a economia, o emprego, a família, a conciliação entre vida profissional e vida familiar, igualdade de género e responsabilidade social das empresas, com vista a criar boas condições de apoios à infância e à parentalidade, nomeadamente:
1. Lançar uma estratégia nacional para a promoção do apoio parental, tendo por objetivo sensibilizar os pais e as empresas que empregam pessoas com filhos menores, de que o apoio a prestar pelos pais aos filhos é fundamental para o seu desenvolvimento saudável e que tal é um desígnio nacional e não uma questão privada;
2. Aumentar e melhorar a rede de serviços de acolhimento de crianças (creches e infantários) a preços razoáveis, tendo por meta que todas as crianças entre os 12 meses e os 6 anos obtenham vaga na rede pública ou semipúblico, não podendo ficar mais do que 6 meses em lista de espera;
3. Criar subsídios universais de infância e apoio à educação, cujo valor aumenta em função do número de filhos;
4. Criar um sistema de benefícios fiscais para trabalhadores/as e empresas que utilizem um sistema de pagamento salarial promotor da conciliação entre a vida familiar e a vida profissional, tais como cheques-creche ou cheques-conciliação, em que as entidades patronais podem pagar uma percentagem do salário em tikets conciliação, para serem usados em creches, com amas, com serviços de cuidado doméstico ou ainda para contratar serviços de apoio domiciliário a pessoas idosas, doentes ou pessoas com deficiência.
5. Garantir prolongamentos escolares até aos 16 anos, compatíveis com os horários laborais dos progenitores;
6. Alterar o regime da parentalidade, permitindo que as licenças de parentalidade, possam ser gozadas de forma flexível, em part-time, divididas por meses, semanas ou dias ou partes do dia, tanto pelo pai como pela mãe, de forma simultânea ou alternada;
7. Alterar o Código do Trabalho e a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, prevendo a obrigatoriedade legal de as Convenções Coletivas de Trabalho regularem a promoção da utilização de horários flexíveis, jornada contínua, trabalho a partir de casa e banco de horas, para pessoas com filhos menores;
8. Criar incentivos à contratação de trabalhadoras grávidas, puérperas e lactantes, à semelhança do que já existe para jovens à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração, através de isenção de taxa social única a suportar pela entidade empregadora, até 3 anos.