Artigo de José Vítor Malheiros
(inicialmente publicado em http://www.publico.pt/politica/noticia/o-combate-politico-e-um-combate-1706513)
É possível amalgamar quase tudo, apresentar propostas que são mantas de retalhos de ideias contraditórias, apresentar propostas que nem são propostas mas apenas postas, fazer discursos que são sopas de pedra onde se juntam ingredientes à medida das assistências, atirar ao ar frases soltas de efeito fácil para repetição nos jornais e passagem nas televisões, prometer mundos e fundos, manipular as estatísticas, mentir descaradamente e jurar pela virgem Maria que nunca se disse outra coisa, dizer que agora é que é, que os outros são piores, que os outros são o demo, sorrir para parecer simpático, fazer ar sério para parecer honesto, acenar para parecer popular, tirar a gravata para parecer modesto, pôr a gravata para parecer ponderado. As campanhas e pré-campanhas eleitorais são férteis nisto. São quase só isto. Quem ouça e veja com atenção o que dizem e fazem os políticos do costume em campanha e se atenha a algo mais que os gritos e as bandeiras e os sorrisos e os beijos aos bebés e os olhares às mamãs corre o sério risco de uma indigestão, de uma congestão, de uma apoplexia.
Os partidos são todos assim? Não. Os políticos são todos assim? Não. As campanhas são todas assim? Não. Mas a campanha eleitoral que vemos na televisão é (com as intervenções dos membros do Governo à cabeça) e, para a esmagadora maioria dos portugueses, essa é a campanha eleitoral. A campanha eleitoral do “arco da governação”, seguindo a lógica da Quadratura do Círculo, onde o círculo nem sequer é quadrado mas apenas um triângulo com o PSD, o CDS e o PS como lados. Não houvesse Pacheco Pereira na Quadratura do Círculo e o programa seria o melhor exemplo de manipulação da opinião pública desde que a Fox News começou as emissões. E, nas campanhas eleitorais, não está o Pacheco Pereira.
A campanha das televisões — mesmo com os debates anunciados — será a gigantesca lavagem ao cérebro do Portugal à Frente e o número de equilibrismo da obsessão centrista de António Costa.
As campanhas eleitorais têm uma perversidade intrínseca. Tem vantagem quem mais mente e quem tem maior descaramento. Tudo seria diferente se os media fizessem um papel de verdadeira fiscalização dos poderes, mas os media consideram que publicar um texto ou fazer um programa de fact-checking das aldrabices do PSD e do CDS é uma “reportagem especial” e não a sua razão de ser. É como se o Nicola decidisse que servir café é algo para fazer apenas nos dias feriados.
Um dos problemas da falta de escrúpulo da campanha do PAF e da navegação prudentíssima da campanha do PS é que se tornam indistinguíveis. Passos Coelho chegou agora ao cúmulo de erigir o combate às desigualdades como um dos objectivos de um futuro governo PAF e de garantir que esse sempre foi uma das preocupações do actual Governo. A lata do homem que mais portugueses atirou para a pobreza não tem limites, a sua falta de vergonha é abissal, o seu decoro inexistente. Mas quem o dirá com a veemência que o facto exige?
A campanha eleitoral — cirurgicamente podada pelas televisões das intervenções à esquerda do PS —, que devia ser o local do choque ideológico e do debate de políticas, torna-se o lugar da amálgama morna, sem confronto de políticas alternativas, um choque de imagens onde apenas se pode comentar o sorriso dos oradores, onde cada vez mais se repete que a diferença entre esquerda e direita é uma coisa antiquada que “deixou de fazer sentido”.
A declaração é um dos bons exemplos da manipulação ideológica actual. Uma declaração pretensamente “equidistante dos extremos” que é de facto um grito de batalha, que visa convencer os eleitores de que a “boa governação” não tem cor política e convencer as massas a abdicar da luta de classes e de lutar pelos seus direitos.
Um dos sinais dos tempos no actual combate político, nesta campanha onde Passos Coelho se recém-arvorou em campeão da igualdade, é a ausência dos pobres. Os pobres sempre foram invisíveis mas nunca foram tão invisíveis. Os desempregados conhecem todos os dias novas indignidades nas bichas dos centros de emprego, nas lojas onde não podem comprar nada. Os velhos e doentes nem sequer podem ocupar a rua, o último lugar do poder. Os remediados degradados para novos pobres aguentam a respiração e tentam adaptar-se à humilhação, tentando passar despercebidos. A responsabilidade da política deveria ser destruir este silêncio, que rouba aos que nada têm a soberania que é sua, devolver a voz aos que não falam, combater a iniquidade, mas a campanha eleitoral, desideologizada, higienizada, soundbitizada, receia fazer aparecer a luta de classes — e isso acontece mesmo à esquerda. Receia parecer radical, mesmo quando a direita lança uma guerra sem quartel aos velhos, aos pobres e aos doentes através dos cortes na saúde e na segurança social. Mas o combate político não é uma valsa. O combate político é um combate, para o qual só poderemos mobilizar vontades com clareza nos objectivos e audácia nas propostas.