Aprender

Artigo de João Rodrigues.


(inicialmente publicado em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/09/aprender.html)

Ao ler as reflexões, descritivas e implicitamente premonitórias, de Pedro Adão e Silva e de Francisco Louçã sobre o triunfo da direita e dos seus dispositivos ideológicos, que tem por cá a colonização de um PS dominado programaticamente por Centeno como uma das suas expressões, relembrei-me de um texto, de 1949, da autoria de F. Hayek, o economista político da direita intransigente com o qual a esquerda que não desiste ainda hoje mais pode aprender:

“A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a coragem de serem utópicos que lhes granjeou o apoio dos intelectuais e lhes deu uma consequente influência sobre a opinião pública que, diariamente, torna possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que se têm dedicado unicamente ao que parecia praticável perante o estado actual da opinião descobrem constantemente que até isso se tornou politicamente inviável devido às mudanças numa opinião pública que eles abdicaram de orientar.”

Por razões que não vêm ao caso, eu prefiro substituir utópicos por radicais. Diria que a esquerda que nos diz que temos de governar dentro dos constrangimentos criados pela direita e pelas suas instituições políticas, que o Syriza faz o que pode (ou seja, austeridade e privatizações), é a esquerda-problema que será sempre derrotada. Desistiu de orientar. Para não cair em idealismos excessivos, diria ainda que é preciso não esquecer a ideia marxista, segundo a qual as ideias dominantes tendem a ser as da classe dominante, o que significa que o actual reforço da dominação, que muito deve à lógica pós-democrática, porque pós-nacional, da integração em curso, está necessariamente articulada com as transformações regressivas que estão a ocorrer no campo dos aparelhos ideológicos.

Agora, se é verdade que não se dispõe e que não se disporá dos mesmos recursos, também é verdade que esta gritante assimetria pode ser menos importante do que se julga: tem é de se ter a linha certa no momento certo, exigindo-se para isso um trabalho enorme, intelectual e de organização política, a montante. Afinal de contas, e só para dar um exemplo, houve um referendo na Grécia ganho contra quase toda a comunicação social e outros aparelhos ideológicos, embora depois tenha faltado direcção política adequada ao momento…

Adenda: deixo abaixo um texto que escrevi para o número do jornal O Espelho do 25 de Abril passado sobre temas conexos e que já não parece estar disponível por aí…


Hayek no Espelho

Devemos tornar a construção de uma sociedade livre uma aventura intelectual de novo, um feito de coragem. O que nos falta é uma Utopia liberal, um programa que não se parece com uma mera defesa das coisas como são, nem uma forma diluída de socialismo, mas um radicalismo verdadeiramente liberal que não poupa as susceptibilidades dos poderosos (incluindo os sindicatos), que não seja exageradamente pragmático e não se limite ao que parece hoje politicamente realizável. Precisamos de lideres intelectuais que estejam dispostos a lutar por um ideal, por muito pequena que seja a possibilidade da sua realização a breve prazo. Deverão ser homens que estejam dispostos a não abdicar dos seus princípios e a lutar para a sua plena implementação, por muito distante que isso possa ser. Devem deixar aos políticos os compromissos práticos. O comércio livre e a liberdade de oportunidade são ideais que continuam a despertar a imaginação de grande número de pessoas, mas a “liberdade de comércio razoável” ou a “redução de entraves” não são dignas de respeito intelectual nem é de esperar que inspirem entusiasmo.

A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a coragem de serem Utópicos que lhes mereceu o apoio dos intelectuais e que lhes trouxe uma consequente influência sobre a opinião pública, o que, diariamente, torna possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que tem se dedicado unicamente ao que parecia praticável perante o estado actual da opinião descobrem constantemente que até isso se torna politicamente inviável devido as mudanças duma opinião pública que eles abdicaram de orientar. A não de ser que a ideia das fundações filosóficas de uma sociedade livre se torne de novo uma questão intelectualmente viva e a sua implementação uma tarefa que desafie a criatividade e a imaginação dos espíritos mais vivos, as perspectivas da liberdade são sombrias. Mas se conseguirmos redescobrir aquela crença no poder das ideias que foi a marca do liberalismo no seu melhor, a batalha ainda não está perdida. O renascimento de liberalismo já está em vias de acontecer em muitas partes do mundo. Chegará a tempo? 

Por que é que O Espelho decidiu traduzir e publicar os dois parágrafos finais de um artigo de Friedrich Hayek (1899-1992) intitulado “os intelectuais e o socialismo”, publicado na University of Chicago Law Review na Primavera de 1949? Realmente, pode parecer estranho assinalar os quarenta anos do 25 de Abril dando espaço ao principal responsável intelectual no século XX pela emergência do neoliberalismo. Trata-se então de um adversário maior de tantos valores, práticas e instituições de Abril, de um adversário maior do socialismo enquanto democracia sem fim, enquanto compatibilização do controlo democrático da economia, da igualização das capacidades para o florescimento humano e de amplas liberdades que dêem voz e poder à gente comum, aos de baixo.

De facto, entre os anos 30 e os anos oitenta do século XX, este académico, economista e filósofo político, que viveu entre a Europa Central e o mundo anglo-saxónico, foi um dos grandes obreiros, no campo das ideias e da sua organização colectiva, de um programa de defesa do capitalismo expurgado de todas as concessões colectivistas; de um programa que assentou na defesa da expansão dos mercados como meio de coordenação económica insubstituível e como condição necessária para o florescimento da liberdade individual. Tudo isto no quadro de democracias limitadas ou mesmo de regimes autoritários, ditos de excepção, considerados os melhores meios políticos para garantir a rápida reinstituição do liberalismo económico.

A estranheza perante esta escolha pode continuar a aumentar quando sabemos que para lá dos princípios e dos mitos de uma ordem espontânea de mercado, com os seus naturais efeitos civilizadores, este vencedor do Prémio de Economia em “memória de Alfred Nobel”, precisamente em 1974, sempre soube que as forças de mercado nada tinham de natural, requerendo a acção de um poder forte e dominado por uma elite hegemónica: “duvido que um novo mercado alguma vez tenha emergido numa democracia ilimitada e parece-me provável que a democracia ilimitada terá tendência para o destruir onde quer que ele tenha emergido”, afirmou um dia. Da teoria até ter enviado uma cópia do seu livro A Constituição da Liberdade, de 1960, a Salazar ou apoiado a ditadura militar “liberal” de Pinochet, como meio temporário preferível a uma democracia com pendor socialista, foi só um passo. Tratava-se de combater sobretudo os que faziam da democracia um mecanismo para o incremento da participação e dos direitos do trabalho organizado, que abrem as portas onde está inscrito “proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”, e para a realização de princípios de justiça social, entendida como igualização no acesso a recursos e poderes fundamentais, pressupondo limites claros aos mercados. As democracias que não sabem limitar a acção colectiva dos subalternos são um “caminho para a servidão”, asseverava desde os anos quarenta.

Estranheza cada vez maior quando vemos Vítor Gaspar, o mais “austeritário” dos Ministros das Finanças que esta democracia cada vez mais limitada alguma vez teve, a garantir com contentamento, em recente entrevista ao Público, que a União Europeia está a seguir o caminho indicado por Hayek, em 1939, num artigo sobre o viés economicamente liberal dos projectos de integração supranacional. Por um lado, limita-se a soberania, condição necessária da democracia, na escala nacional, onde a noção de “comunidade de destino” pode conter um potencial socialista. Por outro lado, entregam-se instrumentos fundamentais de política, como a moeda, a instituições supranacionais pós-democráticas, tudo num quadro de regras interestaduais constrangedoras e de desníveis de desenvolvimento que tornam impossíveis os acordos socialistas nas políticas na escala da integração. O neoliberalismo é uma engenharia política, Hayek foi um dos seus melhores arquitectos e a União Europeia, em geral, e a Zona Euro, em particular, revelou ser uma das suas resilientes construções. Seria difícil inventar melhor para fechar as portas que Abril abriu em Portugal.

No entanto, o leitor que já passou os olhos pelo excerto de Hayek e que já sabe que se trata de um artigo de 1949, numa altura em que, como disse o historiador Tony Judt, poucos eram os que acreditavam na “magia do mercado”, não pode deixar de apreciar uma certa atitude política e intelectual, independentemente dos fins que se buscam: as derrotas políticas e as sabedorias que em cada momento são convencionais, proclamando inevitabilidades, não são por si só razões para mudar de opinião e para desistir daquilo em que se acredita. A minha proposta é simples: os que se revêem em Abril e nos valores do socialismo, enquanto prática democrática igualitária em múltiplas esferas, devem aprender com os neoliberais, como Hayek, precisamente quando estes eram muito mais minoritários e estavam até sendo derrotados em muitas áreas: “nada é inevitável na existência social e só o pensamento faz com que as coisas sejam o que são”, garantia Hayek em 1944. Ajamos como se isto fosse verdade.

É quando se perde que é preciso ter a coragem de ser radical e utópico e não transigir com o espírito do tempo, com o “clima de opinião” criado por todos aqueles que “transaccionam ideias em segunda mão”. Temos a obrigação de saber que o espírito do tempo, em 2014, é fixado pelos herdeiros de Hayek e pelas estruturas com escala europeia que estes criaram.

Perante um projecto que parece avassalador, façamos como Hayek em 1949, mas subvertendo os seus termos: onde está liberal coloque-se agora socialista e vice-versa. Onde está a distopia de uma sociedade liberal assente no mercado sem fim e sem fronteiras, coloque-se a utopia realista de uma sociedade que controla a sua economia, uma economia mista, colocando-a o serviço da igualização das liberdades e capacidades.

E, sobretudo, nunca esqueçamos que quem quer alcançar vitórias na luta das ideias, que se transformam em força material quando a ela aderem poderosos interesses sociais, tem de ter a infinita persistência de pensar o que parece ser, num dado contexto, impossível de concretizar. Não por ser impossível, mas sim porque, simplesmente, não existe ainda poder e força política suficientes. Muitas vezes isto implica somente não deixar cair no esquecimento verdades essenciais. Mesmo que isso acarrete acusações de conservadorismo, passadismo ou saudosismo. Às vezes isto implica também cuidar e proteger palavras que são todo um programa de crítica e de transformação, palavras que Abril autorizou: luta de classes, controlo de capitais, controlo democrático da economia, nacionalizações, autogestão, socialismo.

Hoje, como ontem, levar a sério essas palavras, protegê-las, implica levar a sério o artigo 1º da Constituição da nossa República: Portugal é uma República soberana assente na vontade popular. Sem isso, sem autoridade política, como Hayek de resto bem sabia, nada é possível. Quarenta anos depois, só o espectro da fusão do ideal de autodeterminação dos povos com a questão social, configurado na reestruturação da dívida, na libertação desta tutela euro-imperialista, pode derrotar o projecto neoliberal. Tenhamos então a coragem de ser radicais.