Afirmar as alternativas: Que futuro para a política pública?

Artigo de Sandro Mendonça.


A ciência económica é muita definida colocando a noção de escassez no seu centro: a economia seria a ciência que estuda a afectação de recursos num contexto de escassez. As dificuldades, a frustração, a falta, isso seria o foco da ciência “triste”. No entanto, em tempos de pensamento único um emprego mais apto de atributo parece ser à política pública. Aqui sim rareia a consideração séria, a discussão aberta e o tratamento consequente de reconsiderações fundamentais. O afunilamento impera, mesmo que surgem novas ideias teóricas, mesmo quando a evidência falsifica as hipóteses testadas.

Um recente livro em dois tomos comete, portanto, uma necessária e fecunda heresia. Tenta uma reflexão plural e profunda sobre caminhos alternativos de política pública para a sociedade e para a economia. “Afirmar o Futuro: Políticas Públicas para Portugal”. No Volume I trata-se de “Estado, Instituições e Política Sociais”, enquanto no Volume II incide sobre “Desenvolvimento Sustentável, Economia, Território e Ambiente”.

Como dizem os coordenadores Paulo Trigo Pereira e a Viriato Soromenho-Marques na introdução à obra: : “Os erros no desenho e execução de políticas públicas podem ser da responsabilidade de poucos, mas as suas consequências são sofridas por quase todos, e são, de facto, todos aqueles que são convocados para pagar o preço desses erros.” (p. 8) Por isso mais perspectivas sobre eventuais consequências devem ter voz logo no início do processo que causa as decisões implicam todos. Daí que este trabalho colectivo seja, logo por si mesmo, mais do que um nexo de palavras potencialmente interessantes ou eventualmente úteis; é uma atitude não-passiva já de si responsável. “As políticas públicas devem resultar de um vasto processo de consensualização estratégica acerca de assuntos considerados fundamentais para a existência de uma comunidade política organizada.” (p. 11).

Entre autores e comentadores de capítulos há mais de 40 especialistas, profissionais, ex-responsáveis por políticas ou observadores próximos de problemáticas. Há muitos percursos intelectuais e de vida, e não apenas intervenientes (por exemplo, temos textos originais traduzidos para português de Mark Blyth e de Paul de Grauwe). Muitos são investigadores ou académicos, outros conhecidos pelos seus contributos individuais para a esfera pública ou para a vida cívica organizada. E é de notar que os contributos não são apenas diversificados, são também produto de um processo de discussão crítica: várias etapas ao longo 2014 com seminários temáticos com debate em profundidade e uma conferência aberta amplamente.

São mais de 700 páginas de trabalho de diagnóstico e de definição propositiva. Muitas vezes as perspectivas são complementares, como quando Paul de Grauwe olha para a evolvente macroeconómica de Portugal e João Leão foca os trade-offs domésticos do país, ou quando Ricardo. Muitas vezes são perspectivas suplementares, quando Ricardo Reis e a dupla Manuel Caldeira Cabral e Hélder Lopes olham para o curto prazo de acordo com linhas distintas de análise que se sobrepõem elevando a percepção da complexidade dos desafios. Mas há também instâncias de tensão crítica quando, por exemplo, tanto Ricardo Cabral como Ricardo Paes Mamede exercem pressão sobre os argumentos dos trabalhos que comentam.

O resultado deste trabalho integrado é demasiado vasto para ser revisto resumidamente de um modo que lhe faça justiça. Destacam-se alguns temas, políticas viradas para a economia real, reformas na governação da dívida, áreas temáticas como a saúde, as pensões, o emprego e o território.

Mas há uma sombra que escurece muitas das vias de reconsideração do desenho e implementação das políticas públicas em Portugal as quais seriam desejavelmente feitas em soberania e democracia. A Europa, tal como a conhecemos hoje. Implicitamente, e em contraste com outros tempos mais deslumbrados, “mais Europa” parece ser uma recomendação afastada da maior parte dos contributos.

Quando o é, o caso raro é Paul de Grauwe, talvez não por acaso um europeu não-português, parece que se pede que a Europa deixe de ser “esta” Europa. de Grauwe é violentamente severo na sua crítica à política económica europeia. Mas, no fundo, parte da política não é deliberativa; é pré-deliberativa. Os moldes são rígidos e estão pré-embutidos nos parâmetros de uma União Económica Europeia com deficiências sérias. “Isto levou a um processo assimétrico, onde a maior parte do ajustamento foi feita pelas nações devedoras.” (p. 20). Melhores tácticas (políticas de conjuntura) são sempre urgentes, mas são necessárias políticas que mudem a estrutura onde as escolhas de política são feitas.

Até que ponto será possível outra Europa com os entendimentos que se cristalizaram na tríade Berlim-Bruxelas-Frankfurt? E até que ponto é possível outro Portugal com esta Europa? Ainda só se começou um princípio para uma discussão. Esta obra é grande. Mas é também uma grande obra porque desbrava caminho. Em tempos de becos sem saída nada disto é pouco.