Artigo de Samuel Cardoso
Num tempo de consensos forçados nos debates económicos, urge ainda mais refletir sobre eles. Repensar a economia implicará, talvez, começar por identificar os problemas fundamentais com que as sociedades se deparam aquando das escolhas económicas. A economia ‘convencional’ – a economia liberal, nas suas mais diversas escolas, e que detém o privilégio de ‘ditar’ o pensamento económico hegemónico – baseia as suas teses na ideia de que a escassez é o problema essencial em torno do qual giram todas as decisões no domínio económico e social. Não pondo em causa a necessidade de refletir sobre as escolhas num mundo limitado, defendo que essa problemática deve ser analisada pelo prisma das escolhas democráticas. Assim, a problemática sobre a qual penso que interessa pensar (e agir) é a da superprodução, num mundo em que de facto os recursos não são ilimitados, e não a da escassez de recursos produzidos.
A ideia de superprodução não é original. Mas, perante o atual estado de coisas, em que o pensamento económico assenta em pilares tão pouco discutidos, importa voltar a trazer o debate à luz do dia. O consenso que foca toda a centralidade na necessidade de ‘saber fazer as coisas’ em detrimento de as pensar faz minguar a democracia, nas escolhas económicas e na vida em geral.
Por superprodução considera-se geralmente a acumulação de inventários que não são escoados pelo mercado, o que leva a que a esfera da produção opte por cortar a produção e, deste modo, o emprego. Como consequência, o consumo ainda é mais reduzido, agravando a dificuldade em vender a produção excedentária. Esta seria, segundo Karl Marx, a fonte de crises cíclicas no capitalismo. A economia convencional opõe-se a esta teoria. Jean-Baptiste Say, no Traité d’Économie Politique (1803) defende que os bens apenas serão produzido se houver interesse e capacidade para os adquirir por parte dos consumidores. De facto, parece absurdo uma empresa produzir um bem que não vai vender, ou até produzir (perante a lógica da maximização dos lucros) um produto vendável mas não seja o mais rentável tendo em conta a especialização e as capacidades da empresa e as caraterísticas dos consumidores. No entanto, mediante a contradição existente entre a esfera da produção e a do consumo, não há nenhuma garantia de que esse encontro entre oferta e procura ocorra. Quer-se com isto dizer que, se a esfera produtiva produzisse sempre na justa medida daquilo que a esfera do consumo procura, a única razão para o ‘consumo insuficiente’ das populações seria a escassez da produção. Será isto que a realidade nos mostra? Conceitos como procura ‘insuficiente’ ou ‘inadequada’ (ver, por exemplo o insuspeito Bruce Bartlett, responsável nas administrações Reagan e G.H.W. Bush)[1], utilizados por economistas das mais diferentes escolas de pensamento, apontam, conscientemente ou não, para esta contradição entre as vontades e as capacidades das pessoas e as decisões tomadas pelo lado da produção. As contradições do capitalismo revelam-se em diversas esferas: vejamos o facto de que a desarticulação entre investidores privados impede diversas vezes que projectos com elevado potencial lucrativo sejam levados a cabo (pelo facto de as estruturas de decisão serem concorrentes), ao mesmo tempo que o seu ‘contrário’ – ou seja, quando apenas uma empresa com enorme poder influenciador impede na prática outras empresas de fazer investimentos que lhes seriam muitíssimo vantajosos – também se verifica.
Para enfrentar os problemas sociais e económicos com que largas franjas das populações se deparam diariamente, um dos primeiros passos será identificar a origem destes problemas. Neste sentido, o que aqui se procura debater é se esta realidade será fruto da nossa incapacidade de providenciar o suficiente (ou o desejável) para toda a gente, ou se será antes fruto da forma como utilizamos as capacidades que temos para produzirmos.
Antes de mais, como foram as nossas capacidades produtivas evoluindo? O capitalismo foi o sistema económico de que há memória que alcançou um maior domínio sobre a natureza, em sentido lato, e que desta forma permitiu a aquisição de capacidades produtivas mais elevadas. Neste admirável processo, observamos a existência em Portugal, país europeu tardiamente industrializado (e, segundo muitas análises, nunca totalmente industrializado), de uma fábrica em Vila Nova de Famalicão que produz, por minuto, “cinco mil bolas de algodão, 11 mil discos desmaquilhantes, 11 mil quadrados de algodão, 5500 toalhitas de bebé”, com apenas “mais de meia centena” de funcionários[2]. O exemplo pode parecer caricato, mas ilustra bem o estado de aperfeiçoamento técnico que a sociedade alcançou, num dos países cuja estrutura produtiva não atinge o nível dos países capitalistas mais ‘avançados’. O peso do setor terciário (serviços) no total dos empregos nas economias ‘desenvolvidas’ era de 71.4% em 2005[3], sendo de 39% para o mundo inteiro. A tendência de subida deste valor é bastante clara, mesmo nos países asiáticos em plena expansão industrial[4]. Em suma, deu-se um desenvolvimento estrondoso ao nível das capacidades produtivas que permitiu que o maior número de coisas produzidas de sempre fosse produzido por relativamente pouca gente.
Fiel às ideias de Say, a economia ‘convencional’ considera que é a debilidade dos nossos sistemas produtivos a causa da falta de recursos que assola tantas pessoas. Em economias de mercado, a utilização dos recursos técnicos e tecnológicos deveria ser eficiente e portanto a ‘insuficiência’ de recursos produzidos seria somente consequência da incapacidade dos meios para os produzir – ou seja, a conclusão que daí se extrai é de que nos falta capacidade para produzir mais. Ignora-se a possibilidade de as capacidades produtivas existentes serem muito maiores que as utilizadas. A inutilização destas capacidades é ilustrada pelo exército de pessoas disponíveis para trabalhar que não têm emprego ou pelos terrenos e fábricas subaproveitados ou até abandonados. Ou ainda pelo número elevado de pessoas empregadas que permitem que uma empresa seja individualmente mais bem-sucedida, não por produzir mais, mas por vender mais que os concorrentes ou a preços mais elevados (vejamos o caso das operadoras de telemóveis em Portugal, que oferecem todas sensivelmente o mesmo produto e que empregam milhares de trabalhadores, que são responsáveis não por melhorar o processo de produção de bens materiais ou imateriais, mas por garantir a cada uma das empresas uma maior quota de mercado). Podemos, ainda, pensar num determinado número de bens que são produzidos embora sejam desnecessários e considerados supérfluos por uma esmagadora maioria de pessoas, em detrimento de os recursos neles aplicados estarem a ser usados na produção de outros.
As escolhas que a economia convencional impõe à sociedade baseiam-se no primado de que o lado da oferta numa economia reflete de forma fiel as capacidades que a economia detém e a diversidade que a sociedade abarca, inferindo-se daí que é necessário favorecer esta parcela da sociedade, de modo a que se desenvolva mais. O reflexo destas ideias vê-se claramente na persecução de políticas de atração de investimento externo para promover o ‘desenvolvimento económico’, o que implicará sempre uma redução de investimento noutro ponto do planeta, e um provável agudizar das desigualdades internas para que esse investimento se torne atrativo, reduzindo por exemplo os salários diretos e indiretos. Estas ideias são problemáticas por duas razões intimamente ligadas: por uma razão democrática, por apenas uma parcela pequena da sociedade estar implicada nos processos de decisão a nível produtivo (o ‘ótimo’ do mercado é o ‘ótimo’ para toda a sociedade, que contempla muito mais do que apenas quem decide como se efetua a produção?), e por uma razão que se prende com a alocação de recursos, por ignorar completamente a massa enorme de capacidades não utilizadas que as economias detêm. O ‘desenvolvimento económico’ não seria, portanto, maior se os esforços fossem dirigidos para o aproveitamento do que não está a ser utilizado ao invés de se estimular a competição?
A democratização dos processos de determinação da produção poderá permitir aproveitar de modo muito mais adequado de todas as capacidades por utilizar que, por idiossincrasias da estrutura económica, não o são. A questão parece ser pertinente, tendo ainda o mérito de recolocar o debate de ideias em cima da mesa. De facto, até mesmo a noção da necessidade de produzir mais de modo que as pessoas sejam mais felizes parte de certos preconceitos que escaparão até às pessoas mais bem-intencionadas: como é que poderemos avançar para a proposta e para a sua concretização se não se discute antes de mais quais são os padrões de necessidades e de felicidade (e daí que as aspas sejam usadas para referir o ‘desenvolvimento económico’)? Serão os mesmos para todos os grupos étnicos? Serão os mesmos para todas as pessoas, mesmo dentro do mesmo grupo? Desconstruir a hegemonia e pensar a realidade têm sido fortemente negligenciadas pela economia dominante. Urge debater.
Notas:
1 – http://economix.blogs.nytimes.com/2011/08/16/its-the-aggregate-demand-stupid/?_r=0
2 – http://www.correiodominho.com/noticias.php?id=85475
3 – Ver o relatório de 2006 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: http://www.ilo.org/public/english/standards/relm/ilc/ilc95/pdf/rep-i-c.pdf
4 – Ver, no relatório “Working Time Around the World” (ILO, 2007), “Table 5.1 Share of total employment in the service sector in selected countries (%)”, na página 107. Disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/@publ/documents/publication/wcms_104895.pdf