Artigo de Carlos Farinha Rodrigues
As políticas de austeridade seguidas, a pretexto do acordo assinado com os credores internacionais mas indo muito além do que esses acordos estabeleciam, traduziu-se num recuo dos principais indicadores sociais. Entre 2009 (último ano pré crise e pré medidas de austeridade) e 2013 (último ano de que dispomos dados do INE) a taxa de pobreza aumentou de 17,9% para 19,5%. Este valor reconduz-nos aos níveis de pobreza registados no início do século. De facto, é necessário recuar a 2003 para encontrar um nível de pobreza superior ao verificado em 2013. A intensidade da pobreza, uma medida de quantos pobres são os pobres, alcançou em 2013 o valor de 30,3%. Este valor constitui não somente um pesado agravamento face aos valores ocorridos nos anos anteriores mas constituí mesmo o valor mais elevado desde o início da série pelo INE em 2004. Comportamento similar registaram os indicadores de privação material, traduzindo uma forte degradação das condições de vida das famílias.
Uma das consequências mais dramáticas da crise económica e das políticas seguidas nos anos recentes foi o forte agravamento do número de crianças e jovens em situação de pobreza: a taxa de pobreza das crianças e dos jovens aumentou, entre 2009 e 2013, mais de três pontos percentuais passando de 22.4% para 25.6%.
O agravamento das desigualdades constitui outro traço marcante das políticas seguidas. Apesar da leitura dos indicadores ser nesta vertente mais complexa o padrão do aumento das assimetrias na distribuição do rendimento é nitidamente identificável: o índice de Gini, a medida mais utilizada na medida da desigualdade, sofreu ligeiras alterações ao longo deste período parecendo sugerir que para o conjunto dos rendimentos familiares não se registaram alterações significativas ou, quanto muito uma ligeira subida. Entre 2009 e 2013 este índice aumentou de 33,7% para 34,5%.
No entanto, se considerarmos um outro indicador de desigualdade estimado pelo INE, que mede a distância que separa os rendimentos dos 10% mais pobres dos rendimentos dos 10% mais ricos (indicador S90/S10) verificamos que, entre 2009 e 2013, este indicador passou de 9,2 para 11,1. Se compararmos o rendimento dos 5% mais pobres com os 5% mais ricos (S95/S05) essa mesma distância aumentou de 14.7 para 19.7.
O aumento contínuo ao longo destes anos do fosso que separa as famílias e os indivíduos mais ricos dos mais pobres constituiu o principal traço da evolução das desigualdades neste período, como se pode observar no quadro seguinte.
Os números anteriores são conhecidos. O forte retrocesso registado em termos sociais, o agravamento das situações de pobreza e de exclusão social são hoje factualmente incontestáveis quer a nível nacional quer internacionalmente.
Mas permanecem áreas menos conhecidas dos efeitos das políticas seguidas, que alimentam mitos e criam uma nuvem de incerteza que, em última instância tendem a justificar essas mesmas políticas ou, no mínimo, a sua inevitabilidade.
Pretendemos aqui analisar dois desses mitos sobre o que se passou nos últimos anos em Portugal.
O primeiro, provavelmente o preferido do primeiro-ministro e do Governo, é a de que as políticas de austeridade como os cortes dos salários e das pensões tentaram sempre isentar as famílias e os indivíduos mais pobres.
O segundo, aceite por muitos comentadores sensíveis e críticos do processo de empobrecimento seguido, é a de que a crise foi particularmente sentida pela classe média.
Ambos os mitos não são mais do que… mitos. A realidade, infelizmente, é bem diferente.
Utilizando os dados dos inquéritos às famílias realizados anualmente pelo INE é possível analisar como evoluíram os rendimentos das famílias ao longo da escala de rendimentos. Se dividirmos a população portuguesa em decis de rendimento, isto é se construirmos dez escalões de rendimento começando com os 10% mais pobres e terminando nos 10% mais ricos podemos analisar como evoluíram os respectivos rendimentos.
O gráfico seguinte apresenta a evolução dos rendimentos familiares entre 2009 e 2013 ao longo da escala de rendimentos:
Todos os decis registam um decréscimo do seu rendimento disponível como consequência da profunda crise económica e das políticas seguidas. O rendimento dos 10% mais ricos regista um decréscimo de cerca de 8%. Os rendimentos dos decis 3 a 7 descem menos de 7%. O rendimento dos 10% mais pobres diminui 24%!
Se em 1999 o rendimento dos 5% mais pobres representava 1.1% do rendimento total em 2013 esse valor reduziu-se para 0.8%. Se, alternativamente, considerarmos os 10% mais pobres esse mesmo valor sofreu uma diminuição de 2.9 para 2.4%.
Se é verdade que os mais pobres não foram seriamente afectados pelos cortes nos salários e nas pensões é indiscutível que os seus rendimentos sofreram uma profunda erosão pelo forte recuo das prestações sociais.
As alterações introduzidas nas transferências sociais, em particular no RSI, no CSI e no Abono de Família foram determinantes no aumento da pobreza e, simultaneamente, no agravamento das condições de vida das famílias mais pobres. O recuo das políticas sociais, no auge da crise económica quando elas mais se revelavam necessárias, constituiu inequivocamente um factor de empobrecimento e de fragilização da coesão social.
A forte contracção dos rendimentos dos indivíduos mais pobres, gerada pela conjugação da crise económica, do desemprego e do forte recuo das transferências sociais é a verdadeira imagem de marca das políticas de ajustamento seguidas.
(este texto sintetiza diversas tomadas de posição expressas pelo autor no blog “Areia dos Dias”, bem como outras intervenções públicas do autor acerca dos efeitos redistributivos do processo de ajustamento seguido em Portugal desde 2010)