O empobrecimento dos pobres durante a crise

Artigo de Frederico Cantante.


Os últimos anos foram marcados por uma perda generalizada do rendimento disponível por parte das famílias portuguesas. Tal deveu-se ao aumento brutal do desemprego, dos impostos, aos cortes salariais aplicados aos funcionários públicos e aos pensionistas, aos salários mais magros oferecidos a quem (re)entrou no mercado de trabalho, mas também ao recuo ou insuficiência de algumas prestações sociais. Esta tendência geral foi acompanhada pelo aumento das desigualdades económicas. O rácio entre a parte do rendimento familiar disponível detida pelos 10% e 20% mais ricos face à parcela dos quantis homólogos da base da distribuição passou de 9,4 e 5,7 em 2010 para 11,1 e 6,2 em 2013, respectivamente (INE, 2015).

O recrudescimento das desigualdades deveu-se, no essencial, ao empobrecimento dos pobres. Entre 2009 e 2013, o rendimento médio disponível dos 10% mais pobres diminuiu 24% e o do 2º decil 11% – os valores mais elevados entre os decis considerados (Rodrigues, 2015). Num período de forte diminuição dos rendimentos dos mais pobres, a taxa de risco de pobreza passou de 17,9% em 2010 para 19,5% em 2013. Mas se o valor da linha de pobreza for ancorado em termos reais ao limiar de 2009, ¼ da população portuguesa encontrar-se-ia naquele ano numa situação de pobreza. Para além da incidência, também a intensidade da pobreza, que permite analisar o quão pobres são os pobres, conheceu um forte agravamento: passou de 21,5% em 2009, para 29% em 2013 (INE, 2105).

O empobrecimento das famílias que se situam na base da distribuição do rendimento foi, como seria de esperar, acompanhado por uma pauperização das suas condições de existência: a privação material severa dos 20% mais pobres situava-se, no ano de 2013, em quase 30% e metade da população pobre em Portugal dizia ter, nesse ano, muitas dificuldades para fazer face às despesas correntes (quando em 2007 esse valor era de 36,6%). O aumento exponencial da emigração, da procura do auxílio de instituições do terceiro sector ou do incumprimento das obrigações bancárias complementam o quadro negro traçado pelas estatísticas oficiais.

Num contexto de forte aumento da população desempregada e do número de pessoas que se encontram em situações limítrofes ao desemprego, os chamados estabilizadores automáticos, em particular o subsídio de desemprego, não foram suficientemente eficazes. Mais de metade da população desempregada não teve e continua a não ter direito a receber qualquer subsídio de desemprego. Tal deve-se às restrições que se colocam ao acesso a essa prestação (que penalizam principalmente os mais jovens) e ao facto de muitos desempregados de longa duração (mais de metade da população desempregada) acabar por perder o direito ao subsídio de desemprego e ao subsídio social de desemprego. Se no início dos anos 2000 a taxa de cobertura do subsídio de desemprego superou os 80% (Adão e Silva e Pereira, 2012), nos últimos anos esse direito passou a ser quase um luxo reservado a uma minoria da população desempregada.

A exclusão do mercado de trabalho e o avolumar do desemprego desprotegido foi acompanhado pelo recuo do rendimento social de inserção, a prestação social de último recurso. Depois das reformas de 2010 e 2012, as condições de elegibilidades dos beneficiários desta prestação tornaram-se mais restritivas. Para se aceder a ela passou a ser necessário ser-se ainda mais pobre do que em anos anteriores. Se antes destas reformas uma família constituída por dois adultos e duas crianças podia receber desta prestação até 568 euros, em 2013 esse valor recuou para 374 euros (OECD, 2014). É por isso que no prazo de poucos anos o número de beneficiários diminuiu para cerca de metade e a despesa com esta prestação recuou quase 40%. Os cortes incidiram também sobre a população mais velha: entre Maio de 2011 e o mês homólogo de 2015, cerca de 70 mil portugueses perderam o direito ao complemento solidário para idosos. Apesar dos cortes aplicados nestas prestações, a segurança social tem vindo a financiar o aumento galopante de cantinas sociais a cargo de IPSS, que acabam por ser muito mais dispendiosas do que as transferências monetárias para os mais necessitados (Joaquim, 2015). Os direitos sociais dos mais pobres decorrentes do contrato social que suporta a nossa comunidade política têm, neste sentido, perdido terreno para um paradigma caritativo, assistencialista, que se legitima na estigmatização dos mais fracos e a tende a exponenciar.

Nas palavras de Mark Blyth (2013: 35), “a austeridade é em primeiro lugar e acima de tudo um problema político de distribuição e não um problema económico de contabilidade”. De facto, o denominado processo de ajustamento tem vindo a desajustar um conjunto de equilíbrios sociais e económicos, mais ou menos frágeis, que demoraram tempo a construir. A agudização da desigualdade económica e a pauperização das condições de existência dos mais fracos são dois dos resultados mais pungentes das políticas seguidas nos últimos anos. Portugal é hoje uma sociedade mais deslaçada, na qual as distâncias económicas e as assimetrias de oportunidades se avolumaram. A classe média distanciou-se dos grupos mais ricos da população e a fissura que separa os pobres da restante população alargou-se. Esta tendência é particularmente grave não só por razões de justiça, mas também porque o perfil social e económico da base da distribuição do rendimento no interior dos países é um factor determinante para o seu desenvolvimento económico (OECD, 2015).

Referências bibliográficas

Blyth, Mark (2013), Austeridade. A História de uma Ideia Perigosa, Lisboa, Quetzal Editores.

INE (2015), “O risco de pobreza continuou a aumentar em 2013”, Rendimentos e Condições de Vida 2014 (dados provisórios), Destaque.

OECD (2015), In It Together: Why Less Inequality Benefits All, Paris, OECD Publications.

OECD (2014), “OECD Economic Surveys, Portugal”, Paris, OECD Publications.

Rodrigues, Carlos Farinha (2015), “Pobreza e Exclusão Social: Não é possível discutir o futuro sem conhecer o presente!”, texto publicado no Blogue Areia dos Dias, disponível em http://areiadosdias.blogspot.pt/2015/05/pobreza-e-exclusao-social-nao-e.html

Silva, Pedro Adão e, e Mariana Trigo Pereira (2012), “As políticas de proteção no desemprego em Portugal”, Sociologia Problemas e Práticas, 70, pp. 133-150.