Artigo de João Ramos de Almeida
1. Introdução.
Portugal é apontado como um caso de sucesso, após quatro anos de ajustamento económico em Portugal, levado a cabo sob a égide das instituições da denominada troika. Tanto pelos resultados alcançados em tão pouco tempo, como pelo facto de se tratar do primeiro ajustamento feito no quadro de uma moeda única e seguindo políticas de austeridade.
O caso português foi usado pelas instâncias comunitárias – e deixado ser usado pelas autoridades nacionais – como um exemplo para outros países, como foi o cado da Grécia que muito recentemente confirmou a sua recusa em aplicar a mesma receita. Mas por que razão esta recusa se Portugal mostrou que conseguiu voltar aos mercados e financiar-se com a ajuda do Banco Central Europeu, enquanto a Grécia se manteve debaixo do “nível das águas”?
O programa de ajustamento económico e financeiro, realizado desde 2011 pelo Governo português foi desenhado para recuperar a competitividade da economia portuguesa, equilibrar os desequilíbrios externos e colocar Portugal no caminho certo para prosseguir um desenvolvimento desendividado. O reequilíbrio das contas orçamentais foi traçado como uma condição para a concretização desse objectivo, libertando recursos para reincentivar de forma saudável a economia e, assim, reganhar a confiança dos mercados financeiros internacionais. Por outras palavras, o regresso aos mercados seria o indicador aproximado desse programa, bem mais amplo do que apenas uma forma de conseguir financiamento da a actividade do Estado.
E tanto assim foi que o diagnóstico traçado para a situação portuguesa, desde o primeiro Memorando de Entendimento, divulgado a 3 de Maio de 2011, definiu o caso português como sendo fruto de causas estruturais relacionadas com a própria economia portuguesa. Entre essas causas estava a protecção excessiva da produção bens e serviços não transacionáveis, a rigidez do mercado de trabalho (mantida pela existência de subsídios de desemprego elevados) e a evolução salarial superior aos ganhos de produtividade, tudo agravado por uma baixa qualificação média da mão-de-obra e um deficiente funcionamento da justiça [1].
“Portugal sofre de profundos problemas estruturais, incluindo baixa produtividade, fraca competitividade e elevada dívida que penalizaliza severamente o crescimento potencial. A adopção do euro conduziu a menores poupanças tanto pelo sector público como privado e a um rápido crescimento da actividade e dos preços dos bens não transacionáveis. No ano passado [2010], os receios de uma insustentabilidade orçamental fizeram elevar os spreads para valores recordes no período pós-euro, com o acesso nacional aos mercado a tornar-se rapidamente restringido”, escrevia-se logo à abrir o texto do Memorando de Entendimento.
Com base nesta diagnóstico, a filosofia de intervenção seguiu de perto as linhas definidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em cenários semelhantes[2]. O reequilíbrio da balança de pagamentos poderia ser conseguido através de uma rarefacção da procura interna que forçaria uma travagem das importações e uma reorientação do investimento para bens transacionáveis. Na ausência de instrumento de política cambial, o mesmo efeito poderia ser conseguido através de uma desvalorização interna, através de uma compressão salarial, ajudada pela subida do desemprego[3].
A terapia adaptada deveria permitir 1) uma redução do défice de transacções correntes de 9% do PIB em 2010, para 3,4% em 2014; 2) uma redução do défice orçamental 9,9% do PIB em 2010 para 3,4% em 2014; 3) uma subida da dívida pública de 93% do PIB em 2010 para um pico em 2013 de 115,3% e iniciando desde aí uma trjectória descendente; 4) e uma subida da taxa de desemprego de 11% em 2010 para um máximo em 2012 de 13,4% e descendo desde aí até 12% em 2014.
Ao arrepio do que fora prometido na campanha eleitoral e aproveitando o “desvio substancial”[4] de 3,4 mil milhões de euros entre os valores previstos para 2011 e o Orçamento de Estado para 2012, o Governo Passos Coelho traçou o seu azimute ao definir a situação de Portugal como de emergência. “Chegamos assim à hora da verdade, sendo necessário tomar medidas de fundo que assegurem uma consolidação sustentada das finanças públicas”[5], referia-se no texto do relatório do OE 2012. Tudo em nome da correcção dos “desequilíbrios que acumulámos durante mais de uma década”.
O trabalho que agora se apresenta visa fazer luz sobre a vasta componente “apagada” do programa que não atingiu os seus objectivos e cujo fracasso acabou por ser camuflado por uma inversão da política económica, nunca assumida, de forma a mostrar efeitos económicos que a política inicialmente seguida não produziu. Tudo a par de uma transferência significativa de rendimento do Trabalho para o Capital, de uma forte redução do papel de redistribuição do rendimento através quer da política laboral, fiscal e de protecção social e de uma tentativa de esvaziamento do papel dos sindicatos na vida económica nacional.
2. As primeiras medidas de Austeridade
As medidas adoptadas no programa de ajustamento tiveram uma antecâmara que é necessário ter em conta, até para entender o estado de espírito em que o Memorando de Entendimento foi anunciado e como foi bem aceite na comunicação social.
Após as tardias iniciativas comunitárias para combater os efeitos da crise financeira de 2007/08 iniciada nos Estados Unidos e face à subida em pânico das taxas de juro dos títulos de dívida pública grega, a União Europeia alterou profundamente as suas políticas. Passou a exigir redobrados esforços de contenção orçamental, supostamente para apaziguar os mercados financeiros, que produziram efeitos fortemente recessivos, erodindo a eficácia da contenção desejada e agravando a percepção de insustentabilidade das finanças públicas, culminando em Abril de 2011 com o pedido do Governo português para assistência externa.
É no início de 2010 que o Programa de Estabilidade e Crescimento 2010-2013 (PEC1) é definido contendo já as primeiras medidas de contensão orçamental, de desvalorização interna e de privatização que deveriam levar o défice orçamental para valores de 5,5% em 2011 até 2,8% em 2013. É o caso de: 1) Redução de deduções e benefícios fiscais; 2) tributação extraordinária em IRS dos rendimentos superiores a 150 mil euros; 3) um amplo programa de privatizações (sector de energia, transportes ferroviários e aéreo, construção naval, correios e comunicações, papel, sector mineiro); 4) novos enquadramentos para as empresas e participações públicas. A par destas, foi redefinido um novo enquadramento nas prestações sociais, com congelamento do valor nominal de diversas prestações, revisão das normas do subsídio de desemprego e diminuição do nivel salarial que obrigava a uma aceitação de trabalho por parte do trabalhador desempregado. A 27 de Abril de 2010, é anunciado um novo pacote de medidas (PEC2): 1) aumento das taxas de IVA que passam a ser de seis, treze e 21%; tributalção adicional de IRS e de IRC; 3) agravamento do imposto de selo; 4) cortes na despesa pública, nomeadamente nas transferências para as empresas públicas, nas retribuições de cargos de gestão e limites à contratação pública. Em Setembro, é anunciado um novo pacote de medidas (PEC3). Lançam-se medidas de contenção da despesa de funcionamento do Estado: 1) redução progresssiva dos vencimentos da Função Pública; 2) congelamento de promoções e progressões na carreira; 3) congelamento de novas admissões e redução de contratados; 4) redução de ajudas de custo, horas extraordinárias e ecumulação de funções; 5) redução em 20% das despesas com a frota automóvel. Por outro lado, agravou-se a carga fiscal: 1) mexidas nas deduções e beneficios fiscais em IRS; 2) revisão dos benefícios fiscais para as empresas; 3) convergência de tributação entre assalariados e pensionistas; 4) aumento da contribuição para a CGA; 5) novo Código Contributivo para a Segurança Social; 6) subida de dois pontos percentuais na taxa normal do IVA e revisão das suas tabelas; 7) contribuição sobre o sector financeiro. A 11 de março de 2011, surge ainda um novo pacote de medidas de austeridade (PEC4): do lado da receita, foram aprovadas prlo governo as seguintes medidas: 1) suspensão da aplicação automática de indexação das pensões e alargamento da aplicação da Contribuição Extraordinária de Solidariedade a pensões acima de 1500 euros; 2) congelamento do Indexante de Apoios Sociais (IAS); 3) reforço no controlo das prestações sociais e combate à fraude. Novo aumento da carga fiscal, através de: 1) revisão das deduções à colecta de IRS; 2) racionalização dos benefícios de IRC; 3) actualização dos impostos sobre o consumo; 4) nova revisão das tabelas de incidência do IVA; 5) novas medida de combate à fraude[6].
A 22 de março de 2011 é aprovado, na concertação social – pelas confederações patronais e a UGT – o Acordo Tripartido para a Competitividade e Emprego, que veio dar corpo à Resolução de Conselho de Ministros de 27/12/2010 no sentido de que, face a “debilidades estruturais internas”, se estudassem com os parceiros sociais formas de “garantir que, a par da redução do défice orçamental em percentagem do PIB, sejam criadas as condições para uma recuperação forte e duradoura do crescimento económico”. “Portugal, assim, precisa de aumentar a competitividade das empresas e de combater o desemprego”.
A par de medidas, entre outras, de estímulo a actividade de substituição de importações, melhoria na utilização de fundos estruturais, redução dos “custos de contexto” – como a “revisão dos mecanismos de formação de preços da energia, nomeadamente electricidade e gás natural, incluindo os custos de transporte” e obter “ganhos de eficiência na logística dos transportes”, nomeadamente nos portos – esse acordo abriu a porta à alteração do “conceito de justa causa” no despedimento individual e previu a redução do valor na compensação no despedimento, em pelo menos um terço.
O conjunto destas medidas, se visava um melhor desempenho orçamental, acabou por ter um efeito recessivo que contaminou a gestão orçamental do Estado. Nas tabelas seguintes – relativas à evolução do PIB, da taxa de desemprego e défice orçamenatal – fica patente a ineficácia das medidas de austeridade e das previsões feitas pelo Governo Sócrates, fortemente pressionado pelas instâncias comunitárias.
As primeiras medidas de austeridades deveriam ter feito reduzir o défice orçamental de 10,2% do PIB em 2009, para 7,3% em 2010 e 4,6% em 2011. Em vez disso, o défice orçamental subiu em 2010 para 11,2% do PIB. A ineficácia de cada pacote de medidas justificava o seguinte que, mais tarde, iria justificar o próximo.
O Governo Sócrates assumiu como suas essas medidas, nunca as repudiou, nunca “bateu o pé” às instâncias comunitárias e justificou-as como necessárias, embora se tratasse de uma tentativa forçada de quadrar as pressões comunitárias e uma política soberana de protecção do Estado Social.
Ao mesmo tempo, assistiu-se à revisão em alta do risco-país por parte das principais agências de avaliação financeira, com a subsequente subida nos mercados financeiros das taxas de juro dos títulos de dívida pública. A 6 de Abril de 2011, o Conselho de Ministros aprovou o pedido de ajuda externa.
Desta antecâmara da austeridade, a percepção popular foi a de que o Governo não soube controlar as contas orçamentais até atingirem um ponto perigoso de não retorno. E essa sucessão de medidas ineficazes viria a ser aproveitada políticamente pelo PSD para capitalizar o descontentamento popular, através de um campanha eleitoral – enganadora – baseada na promessa do fim da austeridade e da necessidade de uma reestruturação do aparelho do Estado que atacaria os problemas de fundo da economia. A comunicação social ampliou este entusiasmo de, finalmente, se resolver os males que se avolumavam há décadas.
3. A Austeridade trazida pela troika
Face a estes resultados, seria expectável que a troika pudesse avaliar a situação com outros olhos e tomar as medidas adequadas a permitir uma retoma a prazo, sem fazer perigar o desempenho da economia e a gestão das contas orçamentais. Mas, ao contrário, o Memorando de Entendimento e as suas diversas versões ampliaram o âmbito das anteriores medidas de austeridade e alargou-as às principais áreas do funcionamento do Estado.
O diagnóstico traçado pela troika colocava ao Estado uma poderosa missão instrumental. Colaborar – através da forte redução da despesa e do aumento da carga fiscal – na contracção da procura interna, como forma de reduzir a produção de bens e serviços não transaccionáveis, compensando a perda de rendimento com a redução dos custos de produção – salariais e de contexto – como forma de conceder ganhos de competitividade na produção de bens transaccionáveis, que – dada a rarefaccção da procura interna – teriam de ser dirigidos para a exportação. A inevitável subida do desemprego contribuiria para impedir uma retoma salarial que sapasse esse objectivo.
Em janeiro de 2012, foi aprovado um novo acordo na concertação social – “Compromisso para a competitividade, crescimento e emprego” – novamente pelas confederações patronais e pela UGT. Esse “compromisso” legimitou diversas das medidas para o mercado laboral que viriam a ser adoptadas em Julho de 2012, para vigorar já em 2013. As medidas foram bem mais longe do que o Memorando de Entendimento fixava e integraram-se na política económica que se concretizou em: 1) Cortes nos vencimentos do funcionalismo público; 2) forte agravamento dos impostos sobre os rendimentos dos assalariados e pensionistas; 3) desagravamento da tributação das empresas, através de uma redução progressiva das taxas de IRC, aumento dos períodos de reporte de prejuízos das empresas, forte atenuação da tributação de empresas com actividade noutros países, fruto de regras mais favoráveis na dupla tributação dos lucros; 4) tentativa de redução dos encargos sociais das empresas e agravamento das contribuições dos trabalhadores (em 2011 e 2012, duas tentativas frustradas); 5) suspensão de um acordo tripartido com o congelamento do SMN; 6) redução da retribuição salarial (redução para metade da retribuição por trabalho extraordinária); 7) redução do tempo de lazer (fim de 4 feriados, fim do descanso compensatório por trabalho extraordinário, fim de 3 dias de férias por assiduidade); 8) aumento do tempo de trabalho não remunerado (tentativa frustrada de aumentar em 30 minutos, criação do bancos de horas, fim de feriados e de 3 dias de férias, redução de intervalos de descanso); 9) obstáculos no acesso a prestações sociais e corte do seu valor, congelamento do IAS; 10) reforço das medidas para a caducidade das convenções colectivas e congelamento das portarias de extensão, complementadas pela consagração legal da negociação sectorial ou mesmo de empresa, com um reduzido papel dos sindicatos; 11) novo corte na compensação por despedimento; 12) redução do montante de subsídio de desemprego e da sua duração.
4. Os efeitos das medidas de austeridade da troika
As medidas adoptadas neste período de ajustamento tiveram – como não poderia deixar de ser – o mesmo insucesso registado com as medidas da mesma ordem aprovadas pelo Governo Sócrates.
Fracasso nas previsões e redobrado esforço de austeridade. As medidas levados a cabo durante o ajustamento constituíram um cocktail de medidas de efeito recessivo, desenhadas para contrair a procura interna. Se a eficácia do Memorando era questionável na origem, a dose adoptada e o choque provocado pela intervenção externa provocou um choque recessivo para lá do esperado e essa subavaliação dos efeitos fez com que as metas traçadas – nomeadamente para o crescimento económico, défice orçamental, dívida pública, taxa de desemprego – fossem ficando sucessivamente àquém do pretendido. Veja-se os valores dos indicadores das contas públicas (em milhões de euros):
A incapacidade em atingir os objectivos traçados prende-se com o carácter recessivo das medidas, subavaliado nalguns casos por os critérios oficiais não retratarem fielmente os fenómenos (vidé caso do desemprego). Mas igualmente pelo facto de ter falhado redondamente a ideia – recorrente, já usada com insucessona década de 90 – de que, face a um constrangimento externo, os agentes económicos nacionais eram forçados a agir rapidamente e a mudar de sistema de funcionamento económico.
Fracasso na substituição do “motor” interno e na aposta do mercado externo. Ao apostar num desincentivo dos sectores não transaccionáveis, o Memorando desenhou as suas políticas para uma quebra do consumo privado e dos gastos públicos, a qual – ao cortar fortemente os rendimentos dos assalariados e pensionistas – conduziu a esse fim. Tal como previsto, o consumo privado sofreu o maior ataque. Mas a descida do investimento foi bem mais pronunciada do que a troika e o Governo esperaram. Entre 2010 e 2014 registou-se uma quebra de 20% do investimento, quando se esperava que fosse apenas de 5%, um valor que deveria manter o emprego em níveis bem mais sustentáveis. Veja-se o que aconteceu em milhões de euros às diversas variáveis económicas:
E essa diferença explica a subida abrupta da taxa de desemprego e das novas facetas desse fenómeno, bem acima do que era esperado. À medida que o ajustamento foi sendo feito, acumulando largas faixas populacionais no desemprego, os desempregados apoiados foram deixando de o ser e grande parte deles acabou mesmo por abandonar o mercado de trabalho, não tendo mesmo perspectivas de voltar a encontrar um emprego, deixando de procurar emprego e dando fôlego a uma nova emigração, em escala semelhante à verificada na década de 60.
Pelo caminho, ficou portanto um lastro de mais de 1,4 milhões de pessoas afastadas do mercado de trabalho (não contando com uns 200 mil emigrantes permanentes), o que corresponde a uma taxa de desemprego superior a 20% da população activa, um enorme “exército de reserva” que contribuiu para estabilizar em baixa a quebra verificada dos rendimentros salariais e dos pensionistas. Retenha-se ainda que apenas uma pequena parte desta multidão de desempregados está presentemente a ser apoiada. Em dezembro de 2014, os desempregados apoiados eram 306.062 pessoas, dos quais 60 mil com subsídio social de desemprego, e com o valor médio de subsídio a reduzir-se, fruto das políticas seguidas.
A retracção da procura interna e a subida do desemprego foram definidas como forma de levar os investidores a procurar produtos que pudessem ser vendidos nos mercados internacionais e levar à substituição de produtos intermédios importados por produtos nacionais. Mas mesmo esse objectivo ficou aquém do desejado. As exportações deveriam ter crescido 16,2% no período de ajustamento, mas ficaram abaixo – 13,6%. Mas esse desvio face às projecções foi, porém, bem maior nas importações. O valor das importações deveria ter decrescido. No final do ajustamento e para o conjunto do período era esperada uma quebra de 0,8% das importações – personificando um novo paradigma de equilíbrio externo – mas, afinal, subiram 3,6%. E isso apesar de, nos primeiros anos do ajustamento, terem afundado além do esperado, devido ao aperto abrupto no consumo privado e ao afundamento do investimento. Ou seja, o superávite comercial que deveria estar em crescendo desde 2014, transformou-se afinal num superávite circunstancial que rapidamente se aproxima de novo de um défice comercial, desde que o consumo privado e o investimento deram sinais de uma ligeira retoma, a partir de 2013 e 2014. Atente-se à tendências das variáveis (em milhões de euros)
Observe-se o contributo de cada componente da procura agregada para o crescimento do PIB. Em 2010, era o Consumo e o Investimento que puxavam pelo PIB, com uma contribuição negativa das trocas externas. O Memorando foi criado para combater esse perfil de crescimento. Quatro anos depois, em 2014, o mesmo perfil volta a surgir. Aliás, esse fracasso fica patente quando se observa as metas traçadas em que se previa um contributo positivo das trocas comerciais em 2014 e 2015, respectivamente, de 1,1 e 1,4 pontos percentuais. E com o consumo privado a desempenhar um papel secundário – de 0,7 e 0,3 pontos percentuais em 2014 e 2015. Algo não correu bem e a economia regressou à trajectória passada, de um crescimento baseado em consumo privado e em importações, tão criticada pela troika e governo português por estar na base do tipo de crescimento insustentável.
O saldo da balança de transacções correntes cujos défices atingiram os 10% do PIB e que esteve na base das precupações da troika e da coligação de direita, reduziu-se fortemente até atingir um superávite. Esta súbita alteração foi elogiada e interpretada como o sinal da projectada mudança de paradigma. Mas tal como acontecera antes de 2011, o relançamento da procura interna rapidamente começou a inverter aquele que era – afinal – um frágil sinal de mudança. Ou seja, a aplicação do Memorando não resultou na reestruturação da economia como fora prometido.
Esta evolução das trocas conerciais vai de par com a subida dos indicadores de confiança nos sectores de actividade baseados na procura interna, ao arrepio do que era esperado inicialmente. Veja-se a evolução desses índices:
Fracasso das reformas de promoção do investimento. A coligação de direita no governo prometeu realizar no período de ajustamento um conjunto de reformas que libertassem recursos financeiros que pudessem ser canalizados para o investimento. Foi o caso: 1) reforma do Estado; 2) continuação das privatizações, como forma de promover o investimento estrangeiro; 3) redução da tributação sobre empresas; 4) redução dos custos de contexto; 5) redução dos custos de trabalho. Destas, apenas a última foi levada a cabo de forma exaustiva, planeada e eficaz.
A reforma do Estado que “repensasse” o papel do Estado na economia baseava-se na ideia de que o actual tipo de Estado era insustentável a prazo. Essa reestruturação não foi feita de forma politicamente assumida e acabou por ser levada a cabo através de um forte corte e desinvestimento nas principais áreas do Estado Social – na Educação, na Saúde e na protecção social – sem qualquer debate público e sob a versão oficial de que nenhum desses pilares do Estado Social estava a ser afectado.
Esta política foi feita de par com um reforço dos programas de privatização de empresas e participações públicas em empresas que desenvolvem actividades em monopólio e que detinham uma papel estratégico na economia nacional (goldenshare na Portugal Telecom, REN, EDP, ANA, TAP, concessão de transportes públicos, etc.). Os processos de privatização foram rapidamente executados, sem salvaguarda de regras de transparência e controlo público. Os investimentos que faziam parte das propostas feitas caíram por terra (caso da EDP) e muito recentemente o Tribunal de Contas criticou em relatório os claros conflitos de interesses criados nessas operações.
Em simultâneo, foram aprovadas diversas medidas que facilitam a vida fiscal das empresas, sobretudo das empresas que mais contribuem para a receita de IRC (um quarto é pago pelas grandes empresas). A par de uma redução significativa da dupla tributação económica e de uma redução de tributação a “residentes não habituais” – como sejam administradores de empresas -, foi o caso da aprovação rápida e sem discussão pública atempada de uma reforma do IRC, com custos orçamentais largamente subavaliados, que consagrou uma redução progressiva das taxas de IRC, aumento para o triplo do período de reporte de prejuízos, reduziu a isenção der tributação de dividendos, a par de outras medidas com o mesmo fim.
Por reformar ficou uma forte redução dos “custos de contexto”, prevista desde a 1º versão do Memorando de Entendimento e que nunca foi feita, alegadamente por poder perigar o processo de privatizações. Uma reforma que poderia reduzir o actual peso desses custos na produção de quase 30%.
Apenas se reduziu de forma exemplar os “custos do Trabalho” – que pesam 25% nos custos de produção. Essa redução redundou numa efectiva e significativa transferência de rendimento dos assalariados para as empresas. O peso dos salários no PIB atenuou-se fortemente desde 2009. Em cinco anos, as remunerações perderam 4 pontos percentuais no VAB, absorvidas pelos excendentes brutos de exploração (lucros). Veja-se a sua evolução nos últimos anos, em % do Valor Acrescentado Bruto.
O ambiente recessivo aprofundado pela austeridade poderia ter mantido a mesma proporção de cada uma das componentes do PIB ao longo do período, caso a repartição dos esforços fosse equilibrada. Mas não foi isso que aconteceu. As medidas de austeridade traduziram-se numa queda abrupta do peso dos salários no rendimento criado, numa desvalorização do factor trabalho, no agravamento da parte da população na pobreza, e numa mais desigual distribuição do rendimento. Em parte, o desemprego influenciou esta trajectória. É sintomático que nos anos de pico de austeridade, as remunerações tenham sofrido cortes de 3,2 mil milhões de euros em 2011 e de 6,3 mil milhões de euros em 2012, enquanto os excedentes brutos de exploração registaram apenas quebras ligeiras, apesar da produção ter registado quebras acentuadas. Por outro lado, a taxa efectiva de IRC (imposto/resultados positivos) tem vindo a atenuar-se. A retoma verificada em 2014 caracterizou-se por uma estagnação das remunerações, tendo como contraponto uma subida dos excedentes brutos de exploração e uma redução do seu contributo para o Estado.
De salientar que a retracção da actividade provocada pelas medidas de austeridade foi muito superior às quebra provocadas pela crise económica de 2008/9. E mais gravoso ainda se tornaram – de forma mesmo irracional – quando os seus efeitos recessivos se sobrepuseram, precisamente, às consequências recessivas da crise económica de 2008/09. Veja-se o que sucedeu em cada um desses períodos. No primeiro gráfico, está o efeito acumulado para cada uma das componentes da produção: no valor da produção, nos consumos intermédios usados, no valor acrescentado criado, nos gastos com pessoal e nos excedentes das empresas. No segundo gráfico, observa-se a variação em valor, ao longo dos anos do ajustamento, das remunerações recebidas pelos trabalhadores e dos lucros das empresas. Note-se como depois de uma forte abalo nos valores das remunerações, o crescimento desse valor se mantém sem subidas significativas, ao contrários dos lucros das empresas.
Os sacrifícios continuados e desiguais foram feitos em nome de um regresso aos mercados, capaz de permitir o financiamento estável da actividade do Estado português. Esse objectivo – arvorado em principal sucesso do programa de ajustamentoa, após o falhanço dos outros – foi, também, muito recentemente posto em causa. Apesar da tardia cobertura protectora do Banco Central Europeu, a aplicação do Memorando nada impediu que, em Junho/Julho de 2015, a ideia de uma possível saída da Grécia da zona Euro tivesse feito subir as taxas de juro dos títulos de dívida pública portuguesa a 10 anos, atingido valores acima de 3%. Um facto que suscita de novo o inquietante receio de uma próxima incapacidade de financiamento a prazo nos mercados financeiros, caso os mercados credores não aceitem os acordos como credíveis. Ou seja, que até nem o único sucesso conseguido com o ajustamento – o regresso aos mercados – mostra ter bases sólidas.
Um fracasso transformado em vitória. Ao contrário do que a troika e o Governo português fazem crer, não foram os recursos “libertados” para o investimento que levaram a uma retoma da procura interna, permitindo o “branqueamento” do consumo privado como uma peça essencial no sucesso do processo de ajustamento. Foi, sim, a retoma do consumo privado que levou a uma retoma do investimento, tal como advogaram sempre os críticos do tipo de ajustamento defendido pelas instituições da troika. Observe-se as variações percentuais homólogas trimestrais dos valores do Consumo das Famílias e da Formação Bruta de Capital Fixo e verifique-se como a estabilização do consumo (paragem da quebra) levou a uma paragem igual da queda do investimento e, com a melhoria dos níveis de consumo, o investimento – agora elogiado – voltou a despontar. Mas desponta ainda a níveis muito baixos face à enorme quebra sofrida desde 2010. O Consumo começa a ter variações positivas no 2º trimestre de 2013 e o investimento no 4º trimestre desse ano.
O que levou à inversão do consumo privado? Para essa inversão contribuíram diversos factores: 1) atenuação do esforço de austeridade no final do período (ver gráficos 18 e 19); 2) sucessivas decisões do Tribunal Constitucional, contrariando a intenção governamental e contribuindo – sobretudo em 2014 – para um menor esforço de austeridade; 3) aumento do SMN; 4) habituação dos portugueses ao estado de crise e redução da sua poupança.
O Memorando de Entendimento – seguindo o conselho dos negociadores do PSD – colocou o maior esforço de austeridade nos primeiros anos do período previsto (frontload) e um aligeiramento para o seu final. Este perfil é visível no gráfico seguinte em que se ilustra o esforço previsto em cada ano de ajustamento (aumento de impostos + corte de despesa) e o verificado na realidade.
Esta atenuação do esforço nos anos finais do ajustamento foi ainda mais acentuada com diversas decisões do Tribunal Constitucional e que colocaram em cheque a própria estratégia de redução da despesa pública, definida pelo Governo português. Foi o caso, nomeadamente, das decisões sobre o corte de um subsídio aos funcionários públicos, o corte de 90% de um mês aos pensionistas e reformados, a taxa extra sobre o subsidio de doença e de desemprego, o sistema de requalificação e mobilidade dos funcionários públicos, as reduções salariais na função pública, os cortes nas pensões de sobrevivência e a imposição de que o alargamento da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) aos pensionistas com rendimentos entre mil e 1350 euros, previsto no OE de 2014, teria de ter um “carácter excepcional e transitório”. Essa contenção dos cortes é visível nos gráficos seguintes: no primeiro, mostram-se os valores em cada ano da percentagem do PIB para o esforço de austeridade (subida de impostos + cortes de despesa pública) e, no segundo, os valores acumulados nos cortes de despesa pública, em percentagem do PIB), ao longo do ajustamento.
A atenuação do ritmo de austeridade e as decisões do Tribunal Constitucional contribuíram, assim, para a manutenção nesses anos e seguintes dos rendimentos disponíveis de largas camadas populacionais que – após o choque inicial – tentaram alcançar os níveis anteriores de consumo. Atenuaram os receios dos portugueses e fazê-los reganhar confiança, levando-os a poupar menos e a consumir mais. Por essa razão ou por ausência de rendimentos, a taxa de poupança estimada – tanto das famílias como das empresas – reduziu-se em 2014, depois de uma ligeira subida no período de ajustamento, voltando aos níveis de 2007. Algo que terá ajudado a reganhar igualmente a confiança de investidores.
De alguma forma, é admissível que o aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN), aprovado em Setembro de 2014, possa ter contribuído para uma maior sustentação do consumo. O Memorando de Entendimento suspendeu o acordo aprovado na concertação social que terminava em 2011 – um dos poucos assinados com a CGTP e que antevia uma evolução contínua do SMN. A coligação de direita no Governo sempre alegou que o SMN apenas seria aumentado quando houvesse condições e o primeiro-ministro chegou a afirmar que, quando o desemprego é muito alto, o SMN deveria sim era baixar. Ora, apesar do desemprego se manter em níveis elevados, o Governo de direita inverteu a sua posição. Fruto de uma política que comprimiu os níveis salariais, SMN passou a abranger parcelas cada vez mais alargadas de trabalhadores. Já em 2012, cerca de 15% dos trabalhadores portugueses recebiam um SMN de 485 euros. E quando finalmente se venceu a relutância do governo da maioria de direita em cumprir o acordo assinado por todas as confederações patronais e sindicais de aumento continuado do SMN e se acordou um aumento para 505 euros – com o parecer negativo da CGTP que reivindicava a reposição do poder de compra do acordo anterior – verificou-se que esse aumento abrangeria mais 8,3% dos trabalhadores. Ou seja, após o aumento para 505 euros, cerca de um quarto dos trabalhadores recebia a retribuição mínima. E caso tivesse aumentado para 532 euros (repondo o poder de compra do valor do SMN criado em 1974) mais 6,4% dos trabalhadores beneficiaria dessa medida.
Apesar do forte impacto desses possíveis aumentos abrangerem um número significativo de trabalhadores, o seu impacto nos excedentes de exploração das empresas seria diminuto. O aumento para 505 euros representaria um aumento de 0,36% da massa salarial global. E um aumento para 532 euros representaria um aumento de 1% na massa salarial. Mesmo sem sectores de elevada concentração de trabalhadores a receber a retribuição mínima, os impactos seria pequenos. Esse aparente paradoxo deve-se ao reduzido peso salarial destes trabalhadores no conjunto da massa salarial. Se um salário de 505 euros e de 523,03 euros abrangia em 2012 respectivamente 23,2% e 29,7% dos trabalhadores, a massa salarial dispendida com esses trabalhadores representava, respectivamente, 12,1% e 15,8% da massa salarial global nacional.
Esta era uma medida há muito reivindicada pelo lado sindical e dos quadrantes críticos à aplicação do Memorando, pelos seus efeitos na diminuição da desigualdade e pelo reforço do consumo e do crescimento económico. Mas que esbarrou na coligação no Governo. Até a coligação mudar de posição.
5. Conclusões
O Memorando de Entendimento, aceite pela coligação de direita como o seu programa, partiu de um diagnóstico de necessidade de reestruturação da economia para aplicar uma continuada política de corte de rendimentos salariais, de redução dos direitos e benefícios sociais, de desarticulação da legislação laboral, da contratação colectiva e do esvaziamento do papel dos sindicatos. Tudo tendo em vista – teoricamente – uma recuperação da competitividade da economia nacional e da confiança dos mercados para o seu financiamento.
Após os 4 anos de aplicação das medidas previstas no Memorando e suas sucessivas revisões, verifica-se que praticamente nenhum dos objectivos iniciais foi cumprido. A competitividade da economia portuguesa não foi conseguida. Os défices externos voltarão em breve à medida que a economia recuperar. Empresas públicas que representavam monopólios naturais foram privatizadas sem resultados visíveis no tecido nacional. Os sectores não transaccionáveis recuperarão o seu anterior papel na economia. A retoma económica far-se-á sem que o programa de reformulação económica seja levado a cabo. E que pelo caminho ficou uma multidão de 1,4 milhões de desempregados, centenas de milhares de emigrados qualificados, um crescendo do número de desempregados de longa duração e um mercado de trabalho fortemente empobrecido e desprotegido.
A bandeira da defesa da competitividade nacional serviu, objectivamente e na prática, para executar uma política de classe, tendo como célula primária os interesses das empresas como salvaguarda do interesse nacional. As coisas não correram bem. E por isso, o Governo português mudou de opinião, sem no entanto assumir essa nova política que se coaduna perfeitamente com o calendário eleitoral de 2015.
(com base na apresentação de comunicação ao Congresso da Cidadania. Ruptura e Utopia para a Próxima Revolução Democrática, da Associação 25 de Abril, http://congressodacidadania.pt/)
Notas:
1 – IMF, Portugal: Request for a Three Year Arrangement Under the Extended Fund Facility (2011)
2 – Reis, José (coord.), “A Economia Política do Retrocesso”, Almedina (2014)
3 – Blanchard, Olivier, Adjustement within euro. The difficult case of Portugal (2007)
4 – vidé expressão usada no relatório da proposta de Orçamento de Estado de 2012 (apresentação), embora a expressão usada em reunões do PSD e que passou para a comunicação social seria o “desvio colossal”
5 – idem
6 – Castro Caldas, José e Costa, Ana, A União Europeia e Portugal entre os resgates bancários e a austeridade: um mapa das políticas e das medidas, in A Economia Política do Retrocesso, Almedina (2014)