Este país não é para principiantes*

Artigo de João Teixeira Lopes


Não tem sido fácil classificar o nosso país. Para o pioneiro da sociologia em Portugal, Adérito Sedas Nunes, a nossa formação social, nos idos anos sessenta, configurava-se como a de uma “sociedade dualista em evolução” (Nunes, 1968), com algumas áreas privilegiadas, assaz restritas, a situarem-se em Lisboa e Porto, rodeadas por um mar extenso de tradicionalidade. Leston Bandeira, por seu lado, argumentava que a polarização não é tanto a do rural versus urbano, mas antes a de um Norte que no qual se exprime um processo de “modernização lenta e tardia” (Bandeira, 1996: 39) face a um Sul que, no essencial, se aproxima dos padrões demográficos europeus, o que evidencia, no conjunto do país, um modelo de transição demográfica singular. João Ferrão (1996), mostrava a contrario que, apesar da persistência da ruralidade dos campos, Portugal se urbanizava aceleradamente, complexificando as dinâmicas territoriais e passando de um modelo dicotómico para um xadrez multipolar e reticular. Barreto, na mesma altura, vincava uma “forte desigualdade social estrutural” (Barreto, 1996: 43), mas frisando, ao mesmo tempo, que a sociedade dualista “quase não existe mais” (Barreto, 1995: 843).

A especificidade portuguesa está ainda presente na proposta de Boaventura Sousa Santos (1990) para considerarmos Portugal como “sociedade semiperiférica de desenvolvimento intermédio” (em que os padrões de consumo, mais avançados, são descoincidentes face aos ritmos e processos de produção, tendencialmente periféricos, salientando-se uma “sociedade-providência” que completa e/ou substitui um Estado-providência fraco e desigual). Ou na análise de Machado e Costa que apontam para importantes mudanças estruturais que coexistem, de forma sobreposta e entrecruzada, com “importantes défices de modernização”, pelo que o país seria atravessado por “processos de uma modernidade inacabada” (Machado e Costa, 1998).

Mais recentemente, Almeida (2013) convoca a perspetiva que os dados do European Social Survey permitem, para realçar algumas tendências pesadas: pouca confiança interpessoal, ligada a fracos níveis de capital social, menor ainda nas classes mais desfavorecidas (o que propicia fechamento e laços relacionais fracos); baixos níveis relativos de autotranscendência (“princípios universalistas e de autopromoção) e elevados de autopromoção (poder e realização), ainda que a 1ª seja superior à 2ª; índices relativamente baixos de otimismo e satisfação com a vida (em particular nas classes menos capitalizadas) e uma escassa percentagem de cidadãos que considera viver confortavelmente. Neste âmbito, o autor fala de uma “ressaca” como efeito específico de um país que sofreu transformações bruscas e em que o sistema de expetativas esbarra no sistema de oportunidades, bloqueando a mobilidade social e o otimismo. Francisco Louçã (2011), por seu lado, mostra a coexistência de indicadores de modernidade e de atraso, defendendo que o paradoxo reside na acumulação desigual da riqueza por parte de uma burguesia rentista, que transita entre a política e a economia, acumulando poder, fortemente dependente do privilégio do estado e “criando uma economia amorfa e parasitária” (idem: 123)

As “anomalias do calendário português” (Murteira, 2011), que ora se furtou e resistiu às influências da Europa e da sociedade global, ora se deixou tardiamente arrastar por elas, impõem que tomemos em conta singularidades relevantes que apontam para descontinuidades, hiatos, sobredeterminações e coexistência de assincronismos, revelando a multidimensionalidade de uma modernidade incompleta e plural. Ao invés de processos reducionistas de um etapismo linear, partamos antes de uma visão de modernidades múltiplas, tensas e contraditórias, nas quais Portugal se aproxima e distância de outros países europeus.

Assim se configura também o país em termos migratórios, dificilmente enquadrável, inserido num sistema lusófono que se entrelaça com o europeu; mantendo uma significativa população móvel, tanto no que se refere a entradas e saídas permanentes como temporárias; certas componentes entrando em vigília, outras sendo ativadas (recentemente a emigração). Sobrepõem-se, então, caraterísticas de semiperiferia, com as de plataforma giratória e cruzamento de sistemas e regimes migratórios (Marques e Góis, 2013), o que desafia, persistentemente, perceções, classificações, rótulos e modelos soberanos e fixistas.

* Expressão que Tom Jobim utilizava para classificar a relação com o Brasil

Referências

Almeida, João Ferreira de (2013), Desigualdades e Perspetivas dos Cidadãos. Portugal e a Europa. Lisboa: Mundos Sociais.

Bandeira, Mário Leston (1996), “Teorias da população e modernidade: o caso português” , Análise Social, nº 135, pp. 7-43

Barreto, António (1996), “Três décadas de mudança social” in A. Barreto,  A Situação Social em Portugal (1960-1995). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais.

Barreto, António (1995), “Portugal na periferia do centro: mudança social, 1960-1995”, Análise Social, nº 134.

Ferrão, João (1996), “Três décadas de consolidação de Portugal demográfico moderno” in A. Barreto, A Situação Social em Portugal (1960-1995). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, pp. 165-190

Louçã, Francisco (2011), Portugal Agrilhoado. A economia cruel na era do FMI. Lisboa: Bertrand.

Machado, Fernando Luís e Costa, António Firmino da (1998), “Processos de uma modernidade inacabada. Mudanças estruturais e mobilidade social” in J. M. L. Viegas e A. F. da Costa, Portugal, que Modernidade?. Celta: Oeiras, pp. 17-44.

Marques, José Carlos; Góis, Pedro (2013), “Dinâmicas do sistema migratório lusófono: um olhar a partir das migrações portuguesas”, Revista Internacional em Língua Portuguesa – Migrações, 24, 213-232.

Murteira, Mário (2011), Portugal nas Transições – O Calendário Português desde 1950, Lisboa: CESO CI Portugal

Santos, Boaventura Sousa (1990), O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988). Porto: Afrontament