Artigo de Renato Miguel do Carmo.
A desigualdade é por natureza um fenómeno multidimensional e sistémico, como alguns autores têm destacado (Carmo, 2010; Costa, 2012; Therborn, 2006). Por este motivo, a análise deste fenómeno deverá compreender uma lógica complexa capaz de integrar diferentes variáveis e perspetivas. A desigualdade aumentou na maioria dos países ocidentais e alguns estudos têm chamado a atenção para as consequências da crescente polarização social e económica na Europa e nos Estados Unidos nas últimas três décadas (Carmo, 2013; Milanovic, 2011; Wilkinson e Pickett, 2009; Stiglitz, 2012).
A atual crise económica e social está a ter um impacto considerável na desigualdade e nos níveis de pobreza (OCDE, 2015). Para além dos fatores tradicionais que contribuíam para a sua persistência e agravamento, somam-se outros que, atualmente tendem a amplificar estes problemas. Aprofunda-se um conjunto de riscos sociais que incluem o aumento progressivo do desemprego e a consequente redução do número de empregados, o crescimento das situações associadas ao trabalho precário, que afeta, principalmente, mas não exclusivamente a população jovem, e uma estrutural redução do rendimento disponível, do poder de compra e de alguns mecanismos de proteção social, que advêm fundamentalmente das políticas de austeridade que incidem sobre alguns países europeus, entre os quais se inclui Portugal (OIT, 2012, 2013).
No que diz respeito à população mais jovem, verifica-se que, entre 2008 e 2012, o número de jovens desempregados aumentou em mais de 2 milhões na designadas economias avançadas (OIT 2013). A taxa de desemprego na Europa tornou-se bastante assimétrica entre os países do sul e do norte. Isto é particularmente evidente nas taxas de desemprego dos jovens, que são superiores a 50% em países como a Espanha ou a Grécia (em Portugal ronda os 35%). No lado oposto, em países como a Áustria, Alemanha, Holanda ou Noruega as taxas estão abaixo de 12% (Eurostat). Por outro lado, a proporção de jovens que não estão empregados nem estão a estudar ou em formação (NEEF) está a aumentar significativamente. A desregulamentação do mercado de trabalho acentua as situações cada vez mais heterogéneas e contraditórias de precariedade laboral que afeta tanto os jovens qualificados como os menos escolarizados (ILO, 2013).
As mudanças que estão na base da globalização económico-financeira e da desregulamentação e interpenetração dos mercados implicou uma alteração significativa na forma como as empresas operam e organizam o trabalho, tornando os trabalhadores mais vulneráveis aos efeitos da concorrência interna e externa e, portanto, sujeitos a ajustes continuados. Destes, o fator que provoca uma maior desestruturação tem a ver com a insegurança no emprego e permanente instabilidade contratual. A duração dos contratos de trabalho não só tem diminuído consideravelmente, como em muitos casos persistem atividades sem qualquer tipo de enquadramento contratual e legal. Estes e outros processos têm de tal maneira se agravado que a noção básica de ter uma carreira profissional numa determinada empresa ou organização se esvanece quase completamente (Sennett, 1998; Bauman, 2000; Standing, 2011).
Em certos países europeus, como a Espanha, Portugal e Grécia, uma parte substancial dos jovens desempregados e trabalhadores precários não beneficiam de qualquer proteção social prestados pelos sistemas de provisão por parte do Estado social (Freire, 2006; Alves et al, 2011). Esta situação está não só a contribuir para a generalização de diferentes formas de insegurança perante o trabalho, como amplifica uma desconfiança profunda em relação aos sistemas de organização económica e política.
A incerteza crescente que afeta parte considerável das gerações mais jovens tem efeitos óbvios no decorrer das suas vidas sociais e pessoais. A imprevisibilidade, a que são submetidos diariamente, deriva de múltiplos fatores relacionados com a precariedade laboral e os baixos níveis salariais, dificultando decisivamente a transição entre as várias etapas para a vida adulta, nomeadamente: deixar a casa dos pais, o casamento ou coabitação, a paternidade e a entrada no mercado de trabalho. Como defendem alguns autores, as transições para a vida adulta deixaram de ser lineares, estas tendem ser intermitentes, reversíveis ou diferidas (Bynner, 2005; Furlong e Cartmel, 1997; McDonald et al, 2011).
Perante este cenário geral de incerteza e insegurança, é cada vez mais difícil os indivíduos construírem as suas perspetivas futuras assentes em escolhas e opções claras e bem definidas. As expectativas individuais ou coletivas, os investimentos e as estratégias futuras tornam-se difíceis de projetar e o futuro apresenta-se normalmente como muito nubloso e indiferenciado (Brannen e Nilsen, 2002; Leccardi, 2005; Ylijoki, 2010).
Num estudo realizado pela equipa do Observatório das Desigualdades sobre em jovens com idades compreendidas entre os 18 e os 35 anos (Alves et al, 2011) – no qual se analisaram as diversas situações laborais, as relações sociais e familiares de jovens integrados em postos de trabalho pouco qualificados – verificou-se que precariedade não se circunscreve à questão laboral, expandindo-se pelas várias dimensões e sectores da vida social. Uma das conclusões do estudo considera que a precariedade transforma-se num modo de vida. As pessoas vivem num estado de limite e de risco quase permanente face a um conjunto de incertezas: a dificuldade em manter o contrato de trabalho, o receio do desemprego, a dificuldade em assegurar uma série de despesas, a contenção das práticas de consumo, etc.
Neste sentido, a precariedade detém uma dimensão subjetiva que se reflete numa dificuldade acrescida em projetar o futuro. Na verdade, identificou-se neste estudo um conjunto relevante de jovens para quem o futuro se apresenta como um horizonte limitado a partir do qual não conseguem vislumbrar um caminho delineado ou a possibilidade de alternativas para alterar o presente. Atualmente só uma pequena minoria consegue ingressar no mercado de trabalho enquadrada em situações laborais contratualmente estáveis e duradouras. Para a maior parte dos jovens a construção de um futuro viável em Portugal é uma impossibilidade. As únicas vias que se apresentam são a precariedade, intermediada pelo desemprego, ou a inatividade. A emigração surge assim como quase uma inevitabilidade.
Referências Bibliográficas
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