Dar o peixe, ensinar a pescar… ou trocar o pescador

Artigo de Alexandre Abreu


 

Sobre políticas sociais, estruturas de oportunidades e falácias de composição

Sabemos há muito que se a maioria dos agentes económicos tentar limitar simultaneamente os seus gastos de modo a reduzir o seu endividamento ou aumentar a sua poupança, o resultado será que todos, ou quase todos, terão uma redução dos seus níveis de rendimento (pois os gastos de uns são rendimentos de outros), de tal forma que a poupança efectivamente alcançada será bastante menor do que o pretendido – ou mesmo inexistente.

Este efeito, designado por Keynes como o “paradoxo da poupança”, é um tipo de falácia de composição, cuja insuficiente compreensão por parte da generalidade das pessoas é evidente na frequência com que se continua a recorrer à família como modelo (errado) para a economia e para o Estado.

O que está aqui em causa é o facto de, ao mudarmos de escala relevante, passar a ser necessário termos em conta mecanismos causais que podemos ignorar à escala individual. É uma questão comum em economia, no contexto da passagem da escala micro à escala macro, mas parece-me que é também bastante frequente e relevante – e insuficientemente compreendida – no contexto de outros tipos de intervenção política, incluindo em matéria de políticas e programas sociais (ou de cooperação para o desenvolvimento, conforme os contextos que estejam em causa).

Mais especificamente, isto sucede com todas as políticas, programas ou projectos que visem reforçar a capacidade de grupos-alvo particulares tirarem partido de uma determinada estrutura de oportunidades sem no entanto alterarem, ou alterando muito pouco, essa estrutura de oportunidades.

Um exemplo possível é o de um projecto de promoção da empregabilidade que assente exclusivamente em acções de formação em estratégias de busca de emprego e redacção de CVs. É certamente possível que o grupo de beneficiários registe algum aumento dos seus níveis de emprego, mas, uma vez que não é de esperar que essas acções de formação tenham qualquer tipo de impacto na oferta total de emprego, qualquer ganho para o grupo-alvo terá lugar à custa de menos emprego para terceiros. Este é um exemplo algo extremo, mas muitas acções e programas de promoção da empregabilidade padecem deste problema em maior ou menor grau, de um modo que é insuficientemente apreciado.

E o mesmo acontece com muitas outras microiniciativas de promoção do desenvolvimento económico à escala local que actuam pelo lado da oferta. Promover a ligação ao mercado de um qualquer grupo de produtores, tal como almejado por um grande número de projectos de cooperação para o desenvolvimento, pode com certeza melhorar a situação desse grupo particular, mas é quase inevitável que isso ocorra em detrimento de outros grupos de produtores. O sucesso de um pequeno negócio constituído com recurso a um microcrédito pode ter lugar à custa da falência de estabelecimentos idênticos no prédio vizinho, ou no bairro do lado, se a procura for insuficiente para suportar dois estabelecimentos desse tipo na mesma zona.

Note-se, no entanto, que isto não implica que os projectos e iniciativas em causa sejam inúteis ou inícuos. Primeiro, porque muitos vão além do jogo de soma nula referido no início; e segundo, porque mesmo que o impacto directo positivo se faça acompanhar por um impacto indirecto negativo simétrico (como no meu exemplo inicial do projecto de empregabilidade através da formação em redacção de CVs), a intervenção pode justificar-se por uma questão de equidade e justiça social – por exemplo, porque o grupo-alvo visado é especialmente vulnerável. O que me parece, porém, é que muitos programas e projectos são implementados sem que haja uma reflexão minimamente cuidada sobre os seus impactos globais e o seu contrafactual – mas simplesmente porque o universo de referência tido em conta em termos de impacto é, tão simplesmente, o dos beneficiários directos.

Isto tem implicações importantes para o planeamento e avaliação de intervenções de cariz social. Em particular, implica que o impacto não deve ser aferido apenas junto do grupo de beneficiários directos, devendo também ter em conta os efeitos indirectos – especialmente quando a intervenção visa principalmente promover o acesso de um grupo-alvo específico a um espaço de oportunidades que se mantém no essencial inalterado.

Mas a implicação mais importante, menos técnica e mais política, é que as políticas, programas e projectos sociais mais relevantes são aqueles que não se limitam a reforçar o acesso ao espaço de oportunidades existente – mas que conseguem, ou pelo menos procuram, ampliar estruturalmente esse espaço.


Artigo publicado no Expresso