A propósito da revisão do salário mínimo nacional

Artigo de Fernando Marques

Após três anos de congelamento do seu valor nominal foi finalmente revisto o salário mínimo. Este é um assunto de grande relevância dado o baixo nível salarial do país e o facto de ser abrangido um elevado número de trabalhadores (cerca de 420 mil em 2013).

Em 2006 foi acordado na concertação social a valorização do salário mínimo. Argumentou-se que a desvalorização até então verificada era sobretudo uma consequência da sua ligação (indexação) a prestações contributivas e sociais: foi por isso criado um indexante geral (o Indexante dos Apoios Sociais) e estabelecida uma trajectória de evolução do salário mínimo de modo a alcançar 500 euros em 2011. E houve de facto valorização, com um aumento médio anual real de 3,9% entre 2007 e 2010 – face a uma quase estagnação no mesmo indicador (0,2%) entre 2000 e 2006.

A troica e a falta de vontade política do governo conduziram ao congelamento do salário mínimo, um eufemismo para esconder uma quebra do poder de compra: de 1,5%, em média anual, entre 2011 e 2013.

O que significa pois a presente revisão? Focaremos alguns dos aspectos que a nosso ver são mais significativos: o enquadramento do salário mínimo na lógica da austeridade imposta, o significado da revisão, a política de baixos salários e a redução das contribuições sociais.

A troica e o aumento do salário mínimo

Está por fazer a história da política de austeridade no país, com e sem troica. A nossa convicção é que os invocados direitos dos credores da nossa dívida são um pano de fumo para dois objectivos fundamentais da política de direita: o enfraquecimento do trabalho e a transformação do Estado. Só abordamos o primeiro mas sem deixar de notar que, infelizmente, os dois processos estavam já em curso quando, em Abril de 2011, foi pedida a assistência externa.

O congelamento/redução real do salário mínimo não pode ser separado do processo geral de fixação de salários: não só se reduziram os salários na Administração Pública como se alteraram as regras da contratação colectiva. Este é um ponto que entendemos ser estratégico por estar em causa um direito constitucional – e um direito constitucional, é bom lembrá-lo, atribuído aos sindicatos. A razão porque tal era necessário à salvaguarda dos interesses dos nossos credores é algo que deveria ser explicado[1].

O facto é que o Memorando de Entendimento, incluindo as suas revisões sucessivas, exigiu a mudança do enquadramento legal e da prática da contratação colectiva, fundamentalmente: a atribuição do direito a organizações não sindicais; a descentralização da contratação colectiva (isto é, para que seja exercida ao nível de empresa); a derrogação de normas das convenções colectivas pela legislação de trabalho; a revisão da legislação de trabalho para dar maior relevância ao contrato individual de trabalho; a não extensão de convenções colectivas e a fixação de critérios restritivos para a sua emissão (o que ocorreu em 2012); a redução dos prazos de caducidade e de sobrevigência das convenções colectivas e a suspensão destas (o que aconteceu já este ano). Trata-se em suma de um ataque aos sindicatos.

O sistema de negociação colectiva tinha já sido seriamente abalado, depois dos choques provocados pelo Código de Trabalho de 2003 e pela sua revisão em 2009 tendo esta aprofundado as mudanças antes introduzidas. O argumento usado (em 2003 como em 2009 e em 2014) foi sempre a “dinamização” da contratação colectiva, que funciona aqui como palavra-chave do universo orwelliano em que vivemos. Em suma, a troica veio acelerar um processo que lhe era anterior.

fm1

A revisão do salário mínimo

O salário mínimo foi fixado em 505 euros para vigorar entre 1 de Outubro deste ano e 31 de Dezembro de 2015 (Decreto-Lei 144/2014 de 30.9). Em 2014 o montante anualizado é de cerca de 491 euros. Em termos reais o valor não a acompanha a inflação. Se o salário mínimo fosse fixado em 500 euros em 2011, como foi acordado em 2006, e acompanhasse a inflação verificada em 2012 e em 2013, deveria ter um montante de 515,5 euros em Janeiro deste ano.

fm2

Mas há aspectos que não são claros, já que houve um acordo de concertação social entre as confederações patronais e a UGT (ainda não publicado na página do CES na Internet no momento em que escrevemos) e informações que dão conta que Bruxelas considera o aumento como “temporário”. A Comissão Europeia saberá que a retribuição não pode ser reduzida, mas não deixa por isso de pressionar e jogar na ambiguidade. Esta posição não pode ser vista apenas à luz do papel da Comissão enquanto membro da troica. De facto, a análise das recomendações por si dirigidas aos países no âmbito do Semestre Europeu revela uma posição agressiva e ilegal contra os salários, a contratação colectiva e a segurança social, dada a sua falta de competências da Comissão nestas matérias[2].

A política de baixos salários e a redução de contribuições para a segurança social

Uma das possíveis singularidades da política portuguesa é o largo acordo na afirmação de que não temos futuro com baixos salários, já que une (para além dos sindicatos, o que seria de esperar) governantes (incluindo do actual governo) e mesmo confederações patronais. Mas a realidade não confirma as boas intenções: basta observarmos a evolução da parte salarial no PIB (os ordenados e salários caíram 2,4 pontos percentuais entre 2010 e 2013 (ver o quadro anterior)) ou para os salários nas propostas de emprego para trabalhadores qualificados, divulgadas pelo Instituto de Emprego e de Formação Profissional, os quais pouco excedem o salário mínimo.

Neste contexto, o referido acordo de concertação social – não subscrito pela CGTP-IN e cujos termos terão sido estabelecidos à margem da Comissão Permanente de Concertação Social[3] – tem dois aspectos que merecem reflexão.

O primeiro é o de que estabelece “contrapartidas” ou “compensações” para as empresas abrangidas, apesar da natureza minimalista da revisão efectuada e apesar dos estudos que mostram um baixíssimo impacto nos custos das empresas. Mais chocante ainda é ter-se recorrido a uma baixa de contribuições sociais para a segurança social. Esta baixa ocorre num período (2009-2014) de muito baixo crescimento das contribuições, apesar das receitas provenientes da Contribuição Extraordinária de Solidariedade e, em 2013, do regime excepcional de regularização de dívidas. Mais importante é, porém, o princípio. As contribuições sociais constituem uma receita de que o Estado se não pode apropriar para “compensar” as empresas: são antes uma receita destinada a “financiar, de forma exclusiva, os encargos próprios com a efectivação do direito de cada um à segurança social, no âmbito dos regimes contributivos em que as pessoas ficam enquadrados”[4] (pense-se nas pensões, nos subsídios de desemprego, nos subsídios de doença, etc.). Pelo que entendemos ser imoral e ilegítimo mobilizar recursos da segurança social para tal fim.

fm3

O segundo é a insistência nos critérios da competitividade e da produtividade para orientarem as revisões futuras. Sobre a competitividade, estamos perante uma visão redutora já que apenas se olha para a competitividade-custo. Quanto à produtividade, parece que o governo se não dá conta de que a perda da parte salarial na distribuição do rendimento significa que os salários cresceram menos que a produtividade. E, sendo verdade que o nosso nível de produtividade é inferior à média europeia, culpar os trabalhadores é uma violência pois a produtividade depende essencialmente de factores como a estrutura produtiva, a dotação de capital por trabalhador, a qual depende do investimento, e a capacidade organizativa das empresas. Por último, parece esquecer-se que a Constituição (artigo 59º), a Convenção 131 da OIT (artigo 3º), ratificada por Portugal, e o Código de Trabalho (artigo 273º), estabelecem critérios para a fixação e actualização do salário mínimo. E se é verdade que estes diplomas não ignoram factores de natureza económica, incluindo a produtividade, também o é o facto de em todos ser colocado em primeiro plano as necessidades dos trabalhadores (e das suas famílias, no caso da Convenção nº 131) e o aumento do custo de vida.


Artigo publicado inicialmente no Le Monde Diplomatique – edição portuguesa

Notas:

1 – Este é um ponto essencial que não pode ser aqui abordado. Independentemente do debate sobre a política de austeridade em si mesma, recorde-se que o Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa expressamente recomendou aos Estados-Membros a garantia do direito a trabalho digno, nele incluindo a contratação colectiva (Council of Europe, Safeguarding Human Rights in Times of Economic Crisis, 2013, página 10, disponível em http://wcd.coe.int.).

2 – Shulten e Müller analisam este intervencionismo da Comissão de um modo aprofundado e sistemático em: Shulten T. e Müller), “A new European interventionism? The impact of the new European economic governance on wages and collective bargaining”, 2013, disponível em www.epsu.org.

3 – José Pacheco Pereira, “O dia um do ano eleitoral”, Público, 29.9.2014

4 – Ilídio das Neves, Direito da Segurança Social, 19956, Coimbra Editora, página 360.