Tratados, leituras e subterfúgios

Artigo de Alexandre Abreu.


Em 2012, presumivelmente na ânsia de demostrar responsabilidade orçamental perante a opinião pública – e assim validando implicitamente a leitura errada das raízes da crise proposta pela direita -, o Partido Socialista votou favoravelmente o Tratado Orçamental quando este foi levado à votação na Assembleia da República. É certo que o PS não acedeu então a viabilizar a consagração constitucional que a maioria PSD/CDS pretendia que a transposição do Tratado para o ordenamento jurídico português assumisse, forçando antes a opção pela figura da lei de valor reforçado. Mas não deixou de votar favoravelmente – e validar politicamente – o Tratado do qual já foi dito que ilegaliza o keynesianismo na Europa e que constitui, no fundo, uma versão mais restritiva e punitiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento (para além de um acto de vassalagem relativamente à Alemanha).

No essencial, o Tratado Orçamental institui a obrigação da austeridade para os países deficitários, a despeito da recessão em que estes possam encontrar-se e sem que sejam estabelecidas obrigações expansionistas simétricas para os países excedentários. É uma síntese perfeita de tudo o que está errado com a zona Euro: viés recessivo, ajustamento assimétrico entre devedores e credores, agenda de classe, restrição da margem de escolha política e tentativa vã de ocultar a inviabilidade fundamental sob sucessivas camadas de irreversibilidade. E é também um Tratado destinado a ser constantemente quebrado, dado o irrealismo das obrigações que impõe aos países deficitários (veja-se o historial de incumprimento desde a sua entrada em vigor) – ainda que isso não o torne inofensivo, dada a forma como constrange os parâmetros do debate e das decisões políticas.

Desde então, porém, não têm sido poucas as ocasiões em que numerosos dirigentes socialistas têm procurado distanciar-se deste mesmo Tratado, apelando à chamada “leitura inteligente” do mesmo. Basicamente, o PS reconhece a iniquidade e inaplicabilidade do Tratado, mas faltou-lhe a coragem política para o assumir frontalmente no momento em que mais importava. Em alternativa, tem optado antes por refugiar-se numa posição que, para todos os efeitos, consiste em apelar a que se empregue e institucionalize excepções e subterfúgios diversos de modo a escapar o mais possível a aplicar um tratado… que o próprio PS votou favoravelmente.

A inconsistência e, diga-se com franqueza, tibieza do PS em relação a esta matéria tem contrastado com a dos partidos da maioria, cujo entusiasmo com o Tratado foi sempre consistente com um posicionamento pró-austeritário segundo o qual os défices são para cumprir custe o que custar mas já as vidas são para salvar, mas não custe o que custar. A posição dos partidos da maioria – a insistência na imposição de uma política fiscal-orçamental pro-cíclica em contexto de recessão – é caduca em termos de teoria económica e nociva do ponto de vista social, mas ao menos é assumida de forma frontal e consistente.

Ou pelo menos era-o até agora. Pois qual não foi o meu espanto quando anteontem li que o governo português, pela pena do Secretario de Estado para os Assuntos Europeus Bruno Maçães, submeteu à Comissão Europeia um documento de trabalho apelando a duas coisas que, no discurso da maioria, eram até agora anátema: transferências orçamentais contra-cíclicas, que neste documento assumem a forma da proposta de uma política comum de emprego que inclua um subsídio de desemprego europeu; e o apelo a uma leitura flexível das restrições orçamentais decorrentes dos tratados europeus. Em relação a esta última questão, na versão do documento veiculada pelo Público, propõe Maçães que na análise da situação orçamental de cada Estado-membro seja dado um “tratamento adequado” do ponto de vista orçamental aos custos e investimentos associados a reformas que esse Estado-membro tenha adoptado e que ajudem à convergência com a UE. Ou seja, excepções e subterfúgios que permitam escapar à aplicação de um tratado… que a maioria aprovou entusiasticamente.

Ninguém está impedido de mudar de opinião – particularmente quando a mudança é em sentido positivo. Mas há responsabilidades políticas que têm de ser assacadas a todos aqueles que, contra o bom senso económico e contra o interesse dos cidadãos portugueses e europeus, aprovaram e transpuseram para o ordenamento jurídico português um tratado que é fundamentalmente iníquo, para além de em grande medida inaplicável. Mais grave, um tratado que eles próprios sabem, como têm vindo a demonstrar, que é fundamentalmente iníquo e inaplicável.

A maioria PSD-CDS e o PS fizeram-no apesar de terem sido na altura abundamentemente alertados para essa mesma iniquidade quer pelos partidos que votaram contra, quer por um vasto conjunto de analistas nacionais e europeus. E neste momento histórico em que a frontalidade e a coragem são tão necessárias, continuam a persistir no caminho do subterfúgio e da submissão.


Artigo publicado no jornal Expresso de 1 de Abril de 2015)