Tempo para quê?

Artigo de Alexandre Abreu.


 

Após os desenvolvimentos politicos em catadupa dos últimos dias, a situação parece ter finalmente estabilizado com a assinatura do acordo de princípio entre o governo grego e o Eurogrupo e a aparente aceitação por este último do pacote de medidas proposto. O que para já ainda não cessou é a disputa política em torno da interpretação deste desenlace: todos, ou quase todos, reclamam algum tipo de vitória, ainda que a maior parte destas interpretações seja mutuamente contraditória.

Esta latitude de interpretações é permitida, em primeiro lugar, pela diversidade de critérios utilizada para aferir o desenlace. Do ponto de vista do governo grego, por exemplo, estamos perante uma vitória quando se alcança progressos face à situação anterior? Quando se evita um desenlace considerado catastrófico? Quando se alcança o melhor que era possível alcançar dadas as circunstâncias? Ou quando se alcança os objetivos propostos?

Outro elemento que permite a existência de exegeses contraditórias é a bizantina opacidade, quando não mesmo incompreensibilidade, do próprio acordo, que visa precisamente acomodar interpretações diversas – pelo menos até certo ponto, mas já lá iremos. Esta ambiguidade ao nivel do acordo de princípio estende-se também à lista das medidas, na qual os termos genéricos e a ausência de quantificação ou calendarização precisas permitem (mais uma vez, até certo ponto) acomodar um grande número de interpretações.

E outro ainda é o facto de não se tratar de um verdadeiro desenlace, mas apenas de um primeiro momento num confronto que está no início e vai prosseguir – uma declaração de princípio de parte a parte, para já com um horizonte provável de quatro meses, susceptível de revogação em função da evolução das circunstâncias. Nem o governo grego pode contar com mais do que navegar à vista em matéria de prolongamento do financiamento, nem o Eurogrupo e, de uma forma mais geral, as elites europeias podem ter a veleidade de considerar terem vencido a guerra e afirmado a inevitabilidade da austeridade.

Mas há limites para a latitude das interpretações e, na minha opinião, engana-se quem, defendendo o fim da austeridade e pugnando por uma alteração da relação de forças na Europa, considerar que este acordo foi uma vitória. Poder-se-á argumentar, com mais ou menos razão, que foi o melhor que era possível alcançar, que o acordo não compromete decisiva e definitivamente o essencial dos compromissos eleitorais do Syriza ou que, nalguns pontos, foram alcançados alguns progressos. Mas não foi, seguramente, uma vitória.

O governo grego conseguiu sobretudo ganhar tempo, no sentido de afastar temporariamente o espectro do corte do financiamento – do financiamento do roll-over da dívida pública e, mais decisivamente do que isso, do financiamento do BCE ao sistema bancário grego. Por outro lado, tal como referi em cima, conseguiu também a margem interpretativa dentro da qual poderá, sempre num horizonte de curto prazo, começar a implementar uma agenda governativa mais progressista. Nos próximos meses, o governo grego poderá começar a passar à prática o essencial do seu programa de emergência social e poderá começar a alterar, no plano distributivo, a forma como se repartem os custos da crise em que se encontra a sociedade grega. Tudo isto será importante para os gregos, especialmente para as classes populares. Em termos de justiça social, será incomparavelmente melhor do que fariam e fazem os governos conservadores – e isso não é despiciendo, nem irrelevante do ponto de vista da transposição do debate para outros contextos nacionais. Mas não chega, porque o problema grego não é apenas distributivo e porque a esquerda, para ser alternativa, tem de ambicionar a muito mais do que o alívio humanitário.

É também verdade que o governo grego parece ter conseguido evitar a necessidade de um excedente primário, pelo menos significativo, em 2015. Com algum talento, pode conseguir renovar futuramente essa concessão – ou pode jogar ao gato e ao rato com a troika e o Eurogrupo, comprometendo-se com objectivos macroeconómicos de que depois fica aquém, contando para isso com o precedente dos governos pró-austeritários e com a vontade da outra parte em evitar recorrer à bomba atómica por deslizes relativamente menores. Porém, na melhor das hipóteses, este cenário implica o prolongamento do tipo de condições que o governo grego agora conseguiu: mãos atadas em relação às dimensões estruturais qualitativas a par de alguma flexibilidade orçamental e fiscal. E essa flexibilidade orçamental e fiscal, se permite melhorar a situação em termos de justiça social, está muito longe de ser suficientemente ampla para permitir relançar a economia.

Para além disso, o tempo agora ganho pelo governo grego exigiu em troca algumas cedências em matérias de princípio (reconhecimento da integralidade da dívida, aceitação dos princípios gerais da condicionalidade e da austeridade) que, não sendo definitivas, são politicamente relevantes e poderão ferir de morte o apoio social de que goza.

A questão fundamental que devemos colocar é, por isso, para que pretende o governo grego utilizar este tempo que agora ganhou e em troca do qual aceitou fazer tais cedências. Se for para empurrar sucessivamente o problema com a barriga, ambicionando pouco mais do que uma austeridade socialmente mais justa no contexto de um jogo do gato e do rato com a troika, receio que perderão uma oportunidade histórica e serão, mais cedo ou mais tarde, ultrapassados pelos acontecimentos. Se for para apostar no reforço do apoio politico em função da evolução das circunstâncias, receio que estejam enganados. A nível interno, o reforço que decorrerá do programa humanitário e de justiça social não será suficiente para compensar a gradual desilusão que advirá da persistência da crise. E a nível europeu é pouco ajuizado depositar demasiadas esperanças na vitória do Podemos nas eleições espanholas, dada a forma como o poder está nacionalmente distribuído e institucionalmente cristalizado na União Europeia.

Pelo que o único cenário que não conduz à derrota é que o tempo agora ganho sirva para preparar tecnica e politicamente as condições necessárias à retoma socioeconómica e à recuperação da soberania gregas: a reestruturação unilateral da dívida e a saída da União Económica e Monetária. Não é uma alternativa fácil, mas, como é cada vez melhor compreendido, é a única verdadeira alternativa.

Caso contrário, não terá sido tempo ganho – mas sim tempo perdido.

Artigo publicado no blogue do Expresso.