Artigo de Francisco Louçã.
“Uma década para Portugal”, o relatório ontem apresentado por António Costa e Mário Centeno, é o primeiro esboço do programa eleitoral do PS. Com alguma confusão, porque o texto tanto é “um virar de página” como “não é uma Bíblia”. Em todo o caso, foi galhardamente apresentado e não é um “cenário”, nem uma mera proposta à consideração, é um plano concreto que marca mesmo o começo da campanha eleitoral do PS.
Um plano de horizonte curto e de nome equivocado: o título é “Uma década para Portugal”, mas o plano é só para cinco anos. Evita assim a projecção dos seus números para além de 2019. Mas ainda bem que foi publicado, porque era necessário desde há muitos meses. Espero que os outros partidos façam o mesmo, contribuindo para o debate público e para tornar evidentes as suas propostas, os seus custos e os seus efeitos.
O entusiasmo deslumbrado
O texto desencadeou um eflúvio de entusiasmos. Um jornalista bem preparado, Pedro Santos Guerreiro, normalmente mais contido, foi desta vez impositivo: “Queriam uma política de esquerda, anti-troika e centrada nos trabalhadores? Ei-la, apresentada por um grupo de economistas no Largo do Rato. Nunca o PS foi tão diferente do PSD. Depois disto, António Costa e Passos Coelho nunca poderão estar no mesmo governo”.
Um blog oficialista do PS conseguiu ser mais moderado, mas afinou pelo mesmo diapasão: “O contraste entre o documento do PS e o DEO governamental é significativo. A única coisa em comum é o respeito pelas regras europeias”.
Pedro Lains, analista qualificado, desdobrou-se em parabéns aos autores, declarando mesmo dispensar-se de conhecer o modelo: “Faltava a encomenda, que em boa hora chegou. Já li, já gostei e gostei do conteúdo eminentemente político, assim como da forma política como foi apresentado. Tão político que nem peço para ver o modelo formal, que um dia deverá ser depositado em lugar público. Parabéns, é a palavra certa”.
Lains tinha gritado uns dias antes a sua angústia a propósito do ultraje que representa a proposta do governo para a redução da TSU patronal, porque “a descida da TSU beneficia sobretudo as maiores empresas, aquelas que mais aparecem nas fotografias do Governo”. Nesse texto criticava o silêncio do PS e exigia uma alternativa ao disparate da redução da TSU patronal: “Entretanto, o PS não reage ou reage com pouca força. Um discurso aqui e outro ali não chegam. É preciso uma equipa a repetir o sentimento de ultraje relativamente à medida proposta. O tempo dos estudos, dos ‘modelos’, está a acabar. São precisas vozes. Juntem-se, falem em conjunto, repitam a mesma palavra sempre que são ouvidos, a ver se a mensagem de ultraje não passa para cá. Sem isso, o Governo não deixa de fazer a agenda. Eles têm equipa, naturalmente. Queremos uma — e só uma — no maior partido da oposição. E não é pedir muito. Afinal, trata-se de saber que governo alternativo propõem, quem são as pessoas que lá vão pôr, quais são as ideias que essas pessoas têm para o lugar que querem conquistar. A normalidade democrática é isso mesmo. É demais, esta coisa da TSU, novamente. Se não for desta que ouvimos vozes de ultraje generalizado, será quando?”.
Quando o PS rompeu o silêncio e apresentou as suas propostas, terá Lains reparado que o relatório, tão cheio de parabéns e cujo modelo nem precisa de ser lido, propõe precisamente a redução da TSU patronal, sem que isso o ultrajasse?
O facto é que, uns por terem lido e outros por não terem lido, muitos correram a felicitar o relatório e o seu relator, Mário Centeno, bem como a iniciativa patrocinada por António Costa. No Expresso, Henrique Monteiro foi talvez a única excepção e concluiu, com algum prazer, que esta escolha do PS é um corte com a esquerda, “um corte claríssimo a partir deste documento”. Em contrapartida, o DN garante que “o PS encosta à esquerda”. Em que ficamos então? “Uma política de esquerda, anti-troika e centrada nos trabalhadores”, “encosta à esquerda” ou faz um “corte com a esquerda”?
É o que vou discutir de seguida, apreciando primeiro a escancarada ideologia do documento, depois as suas medidas concretas e, finalmente, avaliando a sua viabilidade.
A ideologia do mercado
O relatório (com as suas propostas) é claramente ideológico. Isso pode ser bom ou mau, ideias são sempre precisas e ainda bem que são apresentadas com clareza. Mas o que escreve não é o que estamos habituados a ler ou a ouvir, nem sequer no PS. Há um deslizamento para posições que o leitor ou a leitora apreciarão por si.
Primeiro exemplo, a função do Estado. Ouviu falar do Estado regulador, do Estado estratego ou de investimento público? Esqueça tudo. O texto, logo quando apresenta os seus objectivos, afirma que se pretende “Reforçar a credibilidade e a qualificação do Estado concentrando‐o nas suas funções exclusivas de soberania (funções soberanas, regulação, salvaguarda de interesses estratégicos nacionais) bem como nas de prestação de serviços com relevância para a sociedade (educação e saúde) e no seu insubstituível papel de redistribuição de riqueza e proteção contra os riscos” (p.9). Investimento público? Nada. Porque “na actual conjuntura os meios de que se pode dispor são extremamente limitados” (p.27).
Estado estratego? Nem vê-lo. Não há no relatório nenhuma estratégia para conduzir ou influenciar a economia e, por isso, a direita que ontem o criticou não tem razão: não há qualquer regresso aos modelos de investimento em infraestruturas de José Sócrates, nem qualquer outro e diferente investimento estratégico. Esqueçam mesmo a herança do governo Sócrates ou qualquer alternativa para investimento público qualificante. De facto, o relatório propõe a continuação da redução significativa do investimento do Estado, seguindo Passos Coelho.
Segundo exemplo: ouviu falar em crítica aos despedimentos e à ignomínia da política de promoção do desemprego? Esqueça tudo. Já nem há despedimentos, há simplesmente “separações entre empresas e trabalhadores” (p.10).
Terceiro exemplo: ouviu falar de crítica à desvalorização interna, ou seja, ao corte nos salários por via da prepotência das políticas governamentais e da troika? Esqueça esse detalhe. É o mercado que se “ajusta”: “Importa ainda destacar que, ao contrário do que é frequentemente referido, o mercado de trabalho revela capacidade de ajustamento dos salários, registando-se no período mais recente reduções de remuneração nominal na ordem do 20% quer por via dos novos contratos quer dos trabalhadores que permanecem” (p.20).
Quarto exemplo: ouviu falar de recuperação dos contratos colectivos, do valor da negociação e do compromisso? Dispensável, o contrato colectivo já só deve servir para os que recebem salário mínimo (que são precisamente os que têm o salário fixado por lei e não por contrato): “Somente para os trabalhadores que auferem o salário mínimo a contratação colectiva tem algum impacto e este deve ser acautelado” (p.21.)
Quinto exemplo, os despedimentos na função pública chamam-se “racionalização de efectivos” (p.64). Onde é que já ouviu isto?
Sexto exemplo, este de uma ideologia bizarra, porque dificilmente se entende o que quer dizer: o documento defende a “criação de um sistema de relações laborais mais justo, porque protege a rotação dos trabalhadores” (p.34), sendo que noutras páginas se critica precisamente o excesso de “rotação” dos trabalhadores. Resultado de umas páginas serem escritas por um e outras por outro, tudo passado a pente fino pela ideologia.
É o mercado, meus amigos. Nunca o PS escreveu, em particular sobre o “mercado de trabalho”, um texto tão acentuadamente liberal na ideologia e liberal na política.
O que lá não está
Dirão os leitores mais desconfiados com a inclinação política ou económica deste cronista: lá está ele a pegar por frases ou ideias, o que importa é o que o PS quer fazer e vai fazer, acabar com a austeridade. Uma beleza. Terá razão o protesto, porque importa mesmo o que se faz mais do que o que se diz. Vamos então ver a política concreta do relatório. Começo pelo que lá não está, antes de verificar o que está.
Os funcionários públicos esperavam as 35 horas? Nada. Esperavam a devolução dos dias de férias? Nada. Esperavam a restituição do valor do salário? As decisões do Tribunal Constitucional não são cumpridas, o PS limita-se a propor uma restituição em dois anos, ao contrário dos quatro do PSD e CDS.
Os desempregados esperavam a reconstituição das indemnizações por despedimento ou dos valores dos subsídios de desemprego? Não pense nisso.
Os trabalhadores esperavam os feriados de volta? Nada. Os reformados esperavam o seu nível de pensão reposto? A decisão do Tribunal Constitucional não é cumprida, esperem dois anos.
Os cidadãos esperavam a rejeição da privatização da TAP? Nada, até são prometidas mais privatizações, embora o PS se tenha dispensado de nos dizer quais.
Mas o que também não está é a reestruturação da dívida
No entanto, o ponto essencial é a falta de qualquer ideia – e antes a confirmação da rejeição – de reestruturação da dívida pública. Com este relatório, o PS põe uma pedra sobre o assunto e corta as pontes de diálogo com a esquerda. Não haverá nenhuma iniciativa nem proposta para corrigir o peso da dívida pública e da dívida externa.
António Costa já o tinha dito, não se mete nisso porque levaria com a porta na cara em Bruxelas. Mas tinha apresentado duas alternativas: uma “leitura inteligente” do Tratado Orçamental e um pedido de financiamento europeu para um programa de recuperação. O pedido de financiamento desapareceu, nem resta sombra dele. A leitura “inteligente” ficou reduzida à expectativa de uma “redução dos spreads dos países mais afectados” (p.25) e de que não seja contabilizada em défice a perda de receitas com a segurança social (p.49). Não existe qualquer proposta para uma negociação sobre interpretações ou regulamentos do Tratado Orçamental, ou normas ou o que quer que seja que permita imaginar que sejam aliviadas as imposições drásticas de um Tratado que é incumprível.
Pelo contrário, as regras do Tratado Orçamental são para aplicar à letra, para atingir “o quase equilíbrio estrutural das contas públicas e a redução do endividamento” (de acordo com o Tratado, p.11). Durante vinte anos, teremos austeridade e obediência.
Chama igualmente a atenção o facto de não haver uma palavra sobre o sistema de crédito. A banca não existe para o relatório. BCP, BPN, BPP, BES, BPI, Montepio, não existem, não se passou nada, não se passa nada. O balanço dos bancos, a sua dívida, os seus riscos, esse é um “mercado” que não é incomodado nem sequer referido pelos autores deste programa económico. Não faz nada, tudo ao molho e fé em Deus.
Depois, o relatório faz contas sobre o Orçamento mas não existe Serviço Nacional de Saúde. Não entra na conta. Não entra nas preocupações nem nas prioridades. Não se muda nada neste domínio. Ausência estranha e preocupante, considerando a orientação liberal do relatório e a importância que o tema assumiu na nossa vida colectiva.
Finalmente, nenhuma alteração da estrutura do IRS, a não ser terminar a sobretaxa (p.47). Se esperava a aplicação do princípio constitucional do englobamento dos rendimentos, de modo que as mais-valias ou rendimentos de capital paguem como os rendimentos do trabalho, não será nunca com esta proposta. Tudo igual.
Como se muda ou não muda noutros domínios, é o que se vai ver a partir daqui.
Milagre no emprego: trezentos mil
O texto garante uma gigantesca criação de emprego: 300 a 350 mil empregos até 2019, reduzindo o desemprego “oficial” para metade em quatro anos, mesmo que para um nível que o anterior primeiro-ministro considerava “inaceitável”. Essa criação de emprego depende de um milagre: o aumento do investimento “em 25% até ao fim da legislatura” (p.93), ou 2019. O número exacto é 31,4%, mesmo assim só conseguindo repor o nível anterior à crise. Mas porque é que o relatório presume que vai haver este entusiasmo de investimento por parte das empresas?
A primeira hipótese é que o PIB real cresça imenso: aproximadamente 12,6% até 2019. Mas isso, sendo uma expectativa manifestamente optimista, pois não há memória de a economia portuguesa ter crescido assim nos últimos vinte anos, mesmo antes do euro, e não é suficiente para induzir um tal crescimento do emprego. A projecção é irrealista, não tem precedente histórico nem tem instrumentos para a tornar possível.
A segunda hipótese é que a redução dos “custos do trabalho” (em 4%), conjugada com as alterações das relações laborais, favoreça a confiança das empresas e dos investidores. A minha interpretação é que o relatório considera que este é o factor decisivo.
Facilitar os despedimentos colectivos
Como já assinalei, o relatório propõe prosseguir, sem interrupção nem perturbação, a política de Passos Coelho e de Portas para o mercado de trabalho. Não há restituição de horas de trabalho, de feriados, de dias de férias, não há alteração das regras para os despedimentos, nem dos subsídios de desemprego, nem das indemnizações pela “separação entre os trabalhadores e as empresas”.
Mas o relatório apresenta uma ideia nova: facilitar os despedimentos colectivos, através de um “regime conciliatório e voluntário, em que as empresas podem iniciar um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às dos despedimento colectivo” (p.31). A troca é esta: neste caso, e só neste caso, os despedidos ficam com uma indeminização maior, aceitando um processo mais expedito e sem recurso ao tribunal.
Mário Centeno é defensor de um “contrato único” que possa responder às “dificuldades dos jovens no mercado decorrem da legislação de proteção ao emprego” (O Trabalho, Uma Visão de Mercado, p.69), pelo que, contrariando a “ilusão protecionista”, será necessária uma reforma que “reduza os custos do despedimento (monetários e processuais), avance no sentido de uniformizar as diferentes formas contratuais e universalize o seguro de desemprego”. Em consequência, propõe um “contrato único” com “períodos experimentais longos” e “mecanismos de pré-aviso de despedimento que facilitem a procura de um novo emprego” (idem, p.89 e 18). Esse “contrato único” chama-se “contrato para a equidade laboral” no relatório do PS e o seu autor acredita que esta norma é suficiente para desencadear a confiança dos empresários, o investimento e o milagre dos 300 mil novos empregos.
Como seria de esperar, o resultado desta política é a redução dos salários: a remuneração por trabalhador cresce nominalmente 0,7% durante todo o período, ou seja, reduz-se em termos reais em 7%, enquanto o PIB real cresce 12%. Para onde vai o resultado deste crescimento, não é difícil de adivinhar. Chama-se transferência de rendimento do trabalho para o capital. Com o PS, os trabalhadores vão perder o equivalente a um mês de salário.
Reduzir as pensões e aumentar a idade da reforma
O relatório propõe depois quatro novas ideias para o sistema de segurança social.
A primeira, aumentar a idade da reforma. Mais uma vez, é a continuidade de Passos Coelho. A coisa é apresentada de modo alegórico: “a reavaliação do fator de sustentabilidade face às alterações ocorridas, quer de contexto (quais? ) quer legislativas, nomeadamente fortalecendo a eficácia do fator e a sua articulação com a idade da reforma” (p.40). É um modo muito rebuscado, mas quer dizer exactamente isto: aumentar a idade da reforma.
A segunda, reduzir as pensões, excepto as mínimas, durante os cinco anos previstos: “congelamento dos valores nominais salvo para as pensões de valores mais baixos” (p.38). Congelar os valores nominais quer dizer que as pensões são reduzidas em termos reais pelo valor da inflação, que o relatório calcula que seja 8% durante estes cinco anos. Se é reformado ou reformada, tome nota: com esta política, perderá 8% da sua pensão no final do período.
A terceira ideia é reduzir o desconto dos trabalhadores com menos de 60 anos em 4% até 2018 (p.48–9). O efeito é que a sua pensão será mais pequena (menos 2,6%). O relatório pretende deste forma aumentar o rendimento disponível actual, a troco de menor rendimento no futuro. O sistema de segurança social perde agora 1050 milhões de euros em receitas, mas vai pagar menos no futuro.
A quarta ideia é a redução da contribuição patronal em TSU em 4%, no que incide sobre contratos permanentes. Assim, a segurança social deixa de receber 850 milhões, segundo o cálculo do relatório. Ou seja, concretiza a ideia que Passos Coelho anunciou, declamando que Portugal precisa dela “como do pão para a boca”: o governo das direitas ameaça, o PS aplica. Este défice orçamental será coberto por novas receitas: um imposto sobre heranças, a restituição do nível do IRC que o actual governo reduziu e uma taxa que pune a “rotação excessiva” de trabalhadores. Mas só será coberto parcialmente, ficará um buraco, mesmo aceitando que estas receitas hipotéticas se concretizem: o resto será pago pelo aumento das receitas fiscais porque o texto declara que vai tudo correr bem.
Sobre o efeito desta medida, já aqui escrevi, bem como Bagão Félix, e as contas são conclusivas: tem um efeito marginal nas contas das empresas e, se pensa que é assim que se estimula o investimento para a criação de emprego, a inocência não faz mal a ninguém mas também não resolve problemas.
Uma miscelânea de ideias
Há boas ideias no documento, mas com aplicações limitadas e até, em alguns casos, discriminatórias: uma (ligeiríssima) reposição de abonos de família (40 milhões de euros, p.41), reposição do Complemento Solidário para Idosos (abrangendo alguns dos que perderam o direito e com o custo de 8 milhões, p.42), um complemento salarial para os rendimentos abaixo do salário mínimo nacional (p.35), a punição dos contratos a prazo típicos, a velha ideia do agravamento do IMI para casas desabitadas (p.53), a redução do IVA da restauração (p.52).
Noutros temas, é a visão tradicional. Não haverá mais emprego na função pública, mesmo que o PS tenha protestado contra despedimentos impostos por Passos Coelho e Portas (e os 700 trabalhadores da segurança social ficam esquecidos?). O número global de funcionários públicos fica congelado e pode mesmo haver despedimentos em algumas áreas: “Isso não significa que em certas áreas da governação não seja promovida a racionalização de efetivos, compensada com o aumento noutras áreas” (p.64). A “racionalização de efectivos”, pode adivinhar o que quer dizer.
O relatório acrescenta ainda uma nova ideia: para haver rejuvenescimento do emprego no Estado, haverá um exame de avaliação ao fim de 15 anos (p.65). Uma proposta curiosa que não é sequer explicada. Mas, como se trata de rejuvenescer os quadros, percebe-se o que quer dizer este exame. Alguns ou muitos desses trabalhadores serão substituídos, ou “racionalizados”.
Haverá mais privatizações (p.73), sujeitas ao superior critério da “clarificação do conceito de ‘setor estratégico nacional’”, que o relatório não faz o obséquio de clarificar. Sobre a TAP, a privatização que será assinada pelo próximo governo, nem uma decisão, o texto assinala só o “risco enorme”. Esperava-se um pouco mais, que determinasse se esse “risco enorme” é para cumprir ou para rejeitar.
O mistério europeu
Para um partido tão devotamente obediente em relação ao euro e à União Europeia, a discrição com que é tratada a questão europeia não pode deixar de revelar um incómodo.
No início do texto, são apresentados dois “cenários adicionais”: tudo corre bem na Europa e tudo corre mal na Europa (p.24–6). Para que servem estes cenários, os leitores não podem sequer adivinhar.
Mas é-nos dito que no primeiro cenário, o da “credibilidade reforçada do projecto europeu”, haverá “políticas pró-cíclicas sincronizadas” e “redução dos spreads dos países mais afectados pela crise da dívida soberana”, uma apreciação do euro da ordem dos 20% e um “cenário particularmente benigno para a economia portuguesa” (p.25).
No segundo cenário, o de uma “crise europeia profunda e prolongada”, teremos “a institucionalização da possibilidade de expulsão dos países da área do euro”, aumento dos spreads da dívida, e, “neste quadro, particularmente associado a uma eventual saída da Grécia da zona euro, com o peso da dívida pública a crescer de forma desmesurada, poria inevitavelmente em questão a permanência de Portugal na zona euro e eventualmente poria em causa a própria existência do euro tal como hoje o conhecemos” (p.26). Este cenário não é explicado. Nem muito menos, perante a hipótese sombria, é indicado o que deveria fazer o governo português – ou o que pretende fazer o PS – para o evitar ou corrigir. De facto, no resto do texto nunca mais emerge qualquer preocupação com o assunto. Assume-se tranquilamente que tudo corre bem, que a Europa não é questão, que Portugal cumpre o Tratado e que não se passa nada, que a Grécia não existe e Berlim também não. Parece imprevidente, parece desconexo desta análise de riscos, mas é o que é.
E os resultados?
Assim, o relatório indica um caminho económico. É a sua virtude. É claro nas escolhas, mesmo que algumas das suas contas sejam relativamente incipientes, indicativas ou até imaginativas (ou propagandísticas, vd. o gráfico ao lado, publicado por um blog oficialista do PS, Câmara Corporativa, tentando explicar que tudo é fácil). Onde é ideológico, mostra um entusiasmo pela soluções liberais para o “mercado de trabalho” que o PS nunca tinha expressado. Abandona a ideia do Estado estratego, reforça o primado do mercado nas escolhas sociais. Diz ao que vem. Onde é concreto, confirma essa ideologia:
- Abandona qualquer ideia de reestruturação da dívida soberana,
- Ignora as sugestões anteriores do PS sobre a “leitura inteligente” do Tratado Orçamental e recusa uma intervenção para o corrigir ou ajustar,
- Ignora a questão da estabilidade e confiança no sistema de crédito e da consistência dos balanços dos bancos,
- Garante a continuidade das políticas de trabalho do governos das direitas, rejeitando a devolução de direitos retirados,
- Recusa a decisão do Tribunal Constitucional, adiando a reconstituição de salários e pensões,
- Propõe a redução do valor real das pensões em 8%, excepto das pensões mínimas,
- Indica o aumento da idade da reforma, de modo não especificado,
- Conduz à redução da remuneração média por trabalhador em 7%.
- Não define uma escolha sobre a privatização da TAP.
Aqui tem o que pretende ser o governo do PS. Já passou o seu Rubicão. A direita tem todas as razões para ficar preocupada: apareceu uma alternativa que quer fazer o mesmo, mas aplicando mais eficientemente a receita, cedendo o mínimo possível aos mínimos sociais.
Artigo publicado no blogue do jornal Público ‘Tudo Menos Economia’ de 22 de Abril de 2015.