Artigo de Pedro Adão e Silva.
Quando olharmos para trás, o legado positivo mais duradouro deixado pelo Memorando de Entendimento terá sido a forma como os programas eleitorais passarão a ser concebidos. Há, a este propósito, um antes e depois da intervenção da troika. Independentemente do conteúdo e das diferenças das propostas, deixará de ser possível a um partido apresentar-se a eleições artilhado com centenas de compromissos vagos, não quantificados e assentes em listagens de boas intenções. Uma maior exigência quanto aos atributos exteriores das políticas públicas, isto é, qualidades que todas as propostas devem ter para além das preferências substantivas, é um sintoma de maturidade e de exigência democráticas.
O exercício que o PS apresentou esta semana representa um ponto de viragem não apenas pelo que propõe, mas também pela forma minuciosa como é proposto. Pode-se concordar ou discordar das soluções, mas a apresentação de um conjunto de medidas articuladas e calibradas de forma a ser possível estimar o seu impacto ao longo de uma legislatura representa uma inovação radical. Esperemos, agora, que produza um efeito agregado de melhoria do debate público, substituindo o ping-pong de acusações e a fulanização que marcam grande parte do debate político por uma discussão organizada em torno de soluções contrastantes, igualmente robustas mas assentes em princípios políticos distintos.
A dimensão da mudança formal só tem paralelo nas propostas anunciadas. Quatro anos passados, o PS libertou-se finalmente da narrativa autodestrutiva do PEC IV. Em lugar de continuar preso ao dilema austeridade/investimento, o documento apresentado esta semana reconhece a natureza dos constrangimentos, mas, num verdadeiro golpe de asa, coloca o enfoque no mercado de trabalho, enquanto não fica amarrado às questões que, sendo centrais, não dependem da vontade autónoma do Governo português (à cabeça, uma solução europeia para uma dívida que é excessiva e insustentável).
Se estamos perante uma equação distinta da que o PS apresentou até aqui, as diferenças face às propostas da maioria são colossais. Desde logo ao revelar uma preocupação com a procura interna e um reequilíbrio do esforço de consolidação, visíveis no movimento de redistribuição a favor do factor trabalho, alavancando o rendimento das famílias (descida da TSU para os trabalhadores e crédito fiscal para os working poor), com consignação dos lucros das empresas à segurança social (“IRC social”), penalização da rotatividade dos contratos de trabalho e taxação das heranças.
Podemos ter dúvidas em relação à natureza de algumas soluções, bem como à sua exequibilidade. Mas faz toda a diferença que o debate se inicie com base num trabalho sério, refletido e ligado à realidade. O PS tem agora uma alternativa concreta, mas não irrealista. Os dados estão lançados.
Artigo publicado no jornal Expresso de 25 de Abril de 2015