Europa: O advento de Behemoth

Artigo de Viriato Soromenho-Marques.


A crise da União Europeia arrasta-se sem qualquer solução inteligente à vista. A Europa não tem nenhum actor político que a defenda. Berlim, como se vê nos ataques violentos lançados contra o BCE de Mario Draghi, ainda não percebeu que a sua defesa fanática da austeridade está a conduzir a zona euro para um colapso, que não poupará os próprios alemães. As ondas de choque de uma Europa que estagnou internalizam-se. A secessão da Escócia foi evitada, mas a crispação cresce na Catalunha. A recusa do federalismo desenterra os tribalismos. É uma constante da história, que quem manda no circo europeu parece desconhecer por completo. Por este caminho, a Frente Nacional chegará ao Eliseu em 2017, ou até antes. A extrema-direita terá numa mão o botão do poderio atómico de Paris (a force de frappe criada por De Gaulle), e na outra o machado que decepará a cabeça do euro, lançando a economia mundial no abismo.

O Monstro de muitas cabeças

O que está a ocorrer na Europa evoca as páginas dramáticas de Thomas Hobbes (1588-1679). Dominando bem a herança judaico-cristã, Hobbes procurou nela os argumentos imagéticos que considerou necessários para expressar a sua doutrina do Estado. No Livro de Job, encontrou o pensador inglês as duas figuras simbólicas que vão balizar a sua visão da experiência política. Essas figuras são dois grandes animais, de proporções monstruosas, respectivamente, o maior animal marinho, o Leviatã, e o maior animal terrestre, o Behemoth. O primeiro, Leviatã, servirá de título ao livro onde descreve um Estado bem ordenado (1651). O segundo, Behemoth, surgirá em 1666-8, quando o autor já atingira 80 anos.

Behemoth, ou o Longo Parlamento é o título completo do livro que Hobbes concluiu em 1668, dedicado à guerra civil inglesa. O Longo Parlamento designa o período de guerra civil e república, entre 1642 e 1660 (subida ao trono de Carlos II). Em Behemoth, Hobbes mostra os desastres de uma sociedade onde a multiplicidade não se consegue harmonizar em instituições capazes de construírem decisões comuns. Ao longo do livro, Hobbes descreve-nos esse “monstro de muitas cabeças” (many-headed monster), uma população de tal modo dilacerada e dividida que não conseguia transformar-se em povo, em fonte de uma soberania, de uma organização estadual capaz de garantir a paz e administrar a justiça. Nesse reino de violentas paixões e de paixões violentas, vemos sempre a luta pela preponderância de interesses particulares. Como Londres e outras urbes comerciais, lutando apenas pelos seus interesses mais imediatos. Os nobres arruinados, procurando a guerra pela apetência mercenária do saque e da pilhagem. Os católicos, pejorativamente designados por papistas. Os pastores presbiterianos, pregando doutrinas incendiárias. A multidão vulgar exercendo a sua força em domínios sobre os quais era completamente ignorante. Seria uma leitura precipitada. Pensar que Hobbes era hostil ao pluralismo. Hobbes sabe bem que uma sociedade é um feixe de interesses. Não, o que está em causa, para Hobbes, não é a utópica visão de uma sociedade unificada sem arestas ou fissuras. Ele não nutria qualquer simpatia por uma vontade geral que antecipasse as experiências totalitárias do século XX. O horror para Hobbes, traduzido na imagem monstruosa e telúrica de Behemoth, seria a contemplação de uma vasta sociedade onde os seus membros, indivíduos e grupos, facções de interesse e de ideologia, fossem incapazes de encontrar o denominador comum da sobrevivência e do progresso mútuos. O Behemoth era um monstro, como, aliás, o Leviatã. Só que este último garantia a vida social, que é a única habitação condigna dos homens, enquanto aquele era o sinal de um suicídio colectivo inevitável. Alguém acredita que a actual estrutura política e económica da UE estará em condições se evitar o crescimento do caos? O conflito, a teimosia, o egoísmo néscio, a surdez, são outras tantas cabeças do monstro que ameaça devorar a Europa.


Artigo publicado na Revista “Visão”, na edição de 9 de Outubro de 2014