Dúvidas sobre as propostas dos peritos do PS

Artigo de João Ramos de Almeida.


As propostas do PS devem ser discutidas com muito cuidado e com toda a atenção por especialistas, para que não se abram alçapões quando se estão a fechar portas. Entende-se a preocupação de quadratura do círculo, de prudência de quem vai governar, mas convém olhar a eficácia das medidas, para que possam ser credíveis.

Indo por partes:

1) A importância de diagnósticos. O documento refere que “para desenhar as soluções é necessário ter um bom diagnóstico das causas”. E é verdade. Não vou discutir o diagnóstico que é feito para a actual situação de Portugal. Deixo isso aos macroeconomistas. Mas parece-me que há uma omissão de relevo em relação ao facto de estarmos integrados num contexto de moeda sobrevalorizada, com todos os instrumentos de controlo orçamental de pé. Mas aceite-se esse pressuposto de omissão;

2) Equidade laboral. O documento dos peritos aponta para o facto de haver um “excesso de contratos a prazo, baixa protecção, baixa taxa de conversão dos contratos a prazo em permanentes”. É verdade e toda essa realidade deve ser atacada. Os contratos a prazo estão a ser usados como um subterfúgio legal, ao criar uma nova forma de contratação sem mexer nas regras de despedimento. E esse subterfúgio foi sendo aprofundado à medida que a legislação – com o PS – inclusive foi alargando os prazos de utilização dos contratos a prazo, sem o “risco” – veja-se o uso perverso das palavras – da contratação efectiva do trabalhador. O contrato a prazo sempre foi usado para fins que a própria lei nunca previu (carácter de excepção, ver artigo 140.º). E nunca foi devidamente atacado pelas autoridades. Por isso, creio que a solução prevista pelos peritos – limitando o seu uso à “substituição de trabalhadores” – ajudará, mas não resolverá o problema. Como se vai vigiar a correcta utilização do contrato a prazo? Qual o agravamento do “risco” de incorrecto uso do contrato a prazo? Vai apertar-se no número de renovações de contratos a prazo? Que reforço se dará à Autoridade para as Condições de Trabalho?

3) Despedimento. É interessante notar a ginástica que é feita para não referir a palavra “despedimento”. O novo “regime conciliatório de cessação de contrato de trabalho” visa uniformizar as condições de despedimento colectivo – bastante célere – com as de despedimento individual (que obriga a um todo um processo e que – creio – não está dependente de condições externas à empresa, de mercado – Código do Trabalho, artigo 351º e seguintes). A “justa causa” não é alterada, mas – creio – alarga-se a possibilidade de despedimento individual à evolução do mercado, nunca devidamente vigiado pelas autoridades públicas;

4) Contestação ao despedimento. O documento é maldoso ao referir que “a empresa não fica com mais poder porque pode ser alvo de processo judicial se o despedimento for impugnável à luz da lei actual”. Era só o que faltava que não o fosse. Mas esquece-se que a principal arma do patronato – concedida aliás pelo PS, salvo erro em 2008, na revisão do Código do Trabalho – foi introduzir a obrigatoriedade do trabalhador de entregar a indemnização por despedimento, caso queira impugnar o despedimento ilegal;

5) Aumento de indemnização por despedimento: O documento dos peritos agrava as indemnizações por despedimento individual – de 12 dias por cada ano de “casa”, para 18 dias nos primeiros 3 anos de casa e para 15 dias nos seguintes. Dando um exemplo concreto de um trabalhador com mil euros mensais e dez anos de casa. Hoje receberia 4000 euros e 5300 euros no novo regime. É um considerável aumento (32,5%, mas corresponde a apenas a mais 1,3 meses de ordenado. É suficientemente dissuasor? Não creio. E ainda por cima apenas se aplica aos novos contratos. Ou seja, terá um efeito muito limitado, na realidade. É um sinal, frágil.

6) Responsabilização das empresas por despedimento:

  1. a) O que parece estar na calha é uma autonomização das contribuições para a eventualidade de desemprego das restantes eventualidades (pensões, doença, etc.). Essa autonomização tem vantagens e inconvenientes. Vantagens: evita o contágio da protecção no desemprego aos recursos das outras protecções. Desvantagem: permitirá a prazo o seu expurgo da Segurança Social e a passagem para a gestão do Ministério da Economia. O documento denomina já essa protecção como “utilização do seguro de desemprego”. Será um acaso? E depois, deverão as verbas de protecção do desemprego ser geridas para a promoção do emprego?
    b) Penalização das empresas que mais despedem: não se entende em quanto será esse agravamento. A formulação é equívoca ainda: refere-se que a actual parcela da TSU que cobre o desemprego é de 3,42 pontos percentuais da TSU. E qual será a nova taxa? Apenas se diz que esse indicador é “calculado com uma média dos últimos 3 anos”, mas apenas será agravada se a média do rácio CUSTOS DE DESEMPREGO DOS EX-TRABALHADORES/CONTRIBUIÇÕES DA EMPRESA ultrapassar a média do sector. A lógica é apenas combater a falsa rotação de trabalhadores que conduz à precariedade. Mas o rácio encontrado pode não ser a melhor medida. Tudo depende dos valores sectoriais. E se houver um sector com uma enorme falsa rotação de trabalhadores, nenhuma empresa verá a sua taxa agravada. Não parece eficaz. Mais: as empresas com poucos despedimentos veriam reduzida a sua taxa social para o desemprego. Mas em que medida? Não será isso uma tendência para a desaparição de uma lógica de redistribuição?

7) Complemento salarial anual. A medida visa conceder um complemento aos trabalhadores que, fruto da sua elevada rotação e outras formas de precariedade laboral, tenham rendimentos anuais significativamente inferiores ao salário mínimo. Pretende-se que seja uma medida de “promoção do emprego”. Mas se assim é, o Estado – ou a Segurança Social?! – estará a subsidiar empregos pobres. Não será um incentivo ao emprego, mas ao mau emprego. E à elevada rotatividade de emprego. Porque não aumentar o SMN? As contas mostram que o impacto geral é diminuto. No fundo, parece ser um aumento do SMN, mas pago pelo Estado, aliás em parte como fez o actual Governo, com o acordo da UGT.

8) Pensões e sustentabilidade do sistema de protecção social. O documento parece fazer um diagnóstico correcto ao sublinhar que o agravamento da sustentabilidade do sistema se deveu, sobretudo, à destruição maciça de emprego e subida exponencial do desemprego, se bem que a tendência de fundo de envelhecimento populacional – e apesar de todos os cortes – conduziu ainda assim a um aumento das despesas com pensões.E que é ainda necessário ajustar as medidas para o equilíbrio do sistema.

a) Factor de sustentabilidade: A solução defendida é uma redução a prazo das pensões, via “reavaliação do factor de sustentabilidade”. O factor de sustentabilidade foi introduzido em 2006 e está dependente da esperança de vida. Na prática, é como fixar o montante que o pensionista receberá até ao final da sua vida – em função da esperança média de vida – como forma de determinação da pensão mensal. Ao “reavaliar” esse factor, não deverá ser para dar mais pensões, mas para as reduzir. Recorde-se que a situação é grave, já que a criação do factor de sustentabilidade levará a uma redução, segundo a OCDE, de 40% das pensões face à situação anterior à alteração.
b) “Outros instrumentos de financiamento”. O documento estabelece – agora veja-se a formulação – “a possibilidade de considerar outros instrumentos de financiamento”. Não sou jurista, mas creio que foi um advogado que sugeriu esta frase. Novas fontes de financiamento é algo que está em cima da mesa há décadas sem que alguma vez se tenha tomado uma decisão ou mesmo encarado “a possibilidade de considerar” alternativas. Não se trata de um assunto fácil. Mas escrever a “possibilidade de considerar” parece – no mínimo – pouco esforço face ao passado…
c) Propostas em concreto? No ponto 4.1.6 “Diversificação do financiamento da Segurança Social”, cria-se um novo imposto sucessório e fixa-se a consignação da receita que se perderia com a descida da taxa de IRC de 21 para 20% em 2016 e da descida de 1,0pp da taxa por cada ano até 17% em 2019. Mas ao mesmo tempo prevê-se uma descida da TSU patronal de 1,5pp em 2016, mais 1,5pp em 2017 e de 1,0pp em 2018 sobre os salários dos trabalhadores permanentes, ficando assim caso “a avaliação da eficácia da medida na criação de emprego estável e de competitividade das empresas assim o recomendar”. Dúvidas: 1) Compensará? 2) Para quê descer a TSU patronal?

i. Compensará? A estimativa da receita do imposto sucessório – 100 milhões de euros – não é clara. Mas é falível. A receita de IRC em 2014 foi cerca de 4500 milhões de euros a uma taxa de 23%. Em 2015, é de 21%. E em 2016 de 20%, 19% em 2017, 18% em 2018 e 17% em 2019. Ou seja, quanto vale 1pp de IRC em 2016, 2pp em 2017, 3pp em 2018, 4pp em 2019? Essa é a questão. Sabe-se que, no total de 13,6 mil milhões de euros de contribuições em 2014, a descida de 1,5pp da TSU patronal sobre contratos permanentes corresponde a 830 milhões de euros. Portanto, seria necessário impor uma cláusula de salvaguarda, dizendo que, caso a receita do imposto sucessório e de IRC não seja suficiente, a Segurança Social nunca sairá penalizada;

ii. Para quê descer a TSU patronal? Pois, não se percebe. Nem há qualquer estudo que leve a pensar que a descida da TSU ajuda ao emprego. Claro que uma elevada TSU em função do emprego não o facilita. Mas nem a taxa parece estar fora da média comunitária, como nesse caso seria melhor repensar o sistema em conjunto e o seu financiamento, caso contrário redunda numa transferência de rendimento dos trabalhadores para as empresas e numa descapitalização da Segurança Social. Aqui aparece – parece-me – mais como forma de compensar, sim, as empresas pelo agravamento do IRC, à custa da Segurança Social. Ou seja, uma nova e mais complexa descida da TSU, semelhante mas mais complexa do que a defendida pelo actual Governo e sempre tão criticada pela oposição, incluindo o PS.

Para já fico por aqui. Mas há ainda a outra metade do estudo.


Artigo publicado no blogue Ladrões de Bicicletas a 23 de abril de 2015.