Artigo de Yanis Varoufakis.
RESUMO
A Europa está passando por uma recessão que difere substancialmente de uma recessão capitalista “normal”, do tipo que é superado através de uma compressão salarial que ajuda a restabelecer a rentabilidade. O presente deslizar a longo-prazo em direção a uma depressão assimétrica e à desintegração monetária coloca os radicais perante um terrível dilema: Devemos usar esta crise capitalista de rara profundidade como uma oportunidade para fazer campanha pelo desmantelamento da União Europeia, dada a sua aquiescência entusiástica para com o credo e as políticas neoliberais? Ou devemos aceitar que a Esquerda não está pronta ainda para uma mudança radical e fazer antes campanha pela estabilização do capitalismo europeu? Este artigo argumenta que, por pouco sedutora que a última proposição possa soar aos ouvidos do pensador radical, é dever histórico da esquerda, nesta conjuntura particular, estabilizar o capitalismo; salvar o capitalismo europeu de si próprio e dos ineptos tratadores da inevitável crise da zona euro. Baseando-se nas suas experiências pessoais e no seu próprio percurso inteletual, o autor explica as razões pelas quais Marx deverá continuar a estar no centro da nossa aånálise do capitalismo, mas também por que razão devemos ser “irregulares” em nosso marxismo. Além disso, o artigo explica porque uma análise marxista, tanto do capitalismo europeu como do atual estado da esquerda, nos obriga a trabalhar em prol de uma ampla coligação, mesmo com direitistas, cujo objectivo deverá ser a resolução da crise na Zona Euro e a estabilização da União Europeia. Em suma, o artigo sugere que os radicais deverão, no contexto da presente calamidade europeia, trabalhar para minimizar o sofrimento humano, reforçando as instituições públicas da Europa, e, deste modo, ganhar tempo e espaço para desenvolver uma alternativa verdadeiramente humanista.
1. Introdução: uma profunda confissão
O capitalismo global teve seu segundo espasmo em 2008, iniciando uma reação em cadeia que empurrou a Europa para uma espiral descendente que está ameaçando os europeus com um vórtice de depressão quase permanente, de cinismo, desintegração e misantropia.
Nos últimos três anos, tenho-me dirigido a audiências excecionalmente diversificadas sobre os destinos da Europa. A milhares de manifestantes anti-austeridade na Praça Syntagma de Atenas, a funcionários do Banco de Reserva Federal de Nova Iorque, a deputados verdes no Parlamento Europeu, a analistas da Bloomberg em Londres e Nova Iorque, a crianças em idade escolar em subúrbios pobres na Grécia e Estados Unidos, a ativistas do Syriza em Salónica, à Câmara dos Comuns em Londres, a gestores de fundos em Manhattan e na City de Londres, a lista é tão longa como é persistente a denegação pelos nossos líderes europeus do humanismo e da razão. Apesar da diversidade dos públicos, a mensagem tem sido coerente: a crise atual na Europa não é apenas uma ameaça para os trabalhadores, para as pessoas que perderam tudo, para os banqueiros, para determinados grupos, classes sociais, ou mesmo para as nações. Não, a atual postura europeia representa uma ameaça para a civilização como a conhecemos.
Se o meu prognóstico é correto – e a crise europeia não é apenas mais uma crise cíclica, a ser superada em breve, à medida que a taxa de lucro recupera na sequência da inevitável compressão dos salários – a questão que se coloca aos radicais é a seguinte: devemos saudar alegremente este afundamento do capitalismo europeu, como uma oportunidade para substituir o capitalismo por um sistema melhor? Ou será que nos devemos preocupar com isso, a tal ponto que encetemos mesmo uma campanha para estabilizar capitalismo europeu? A minha resposta tem sido clara ao longo dos últimos três anos e a sua natureza é traído pela lista acima mencionada das diversas audiências que procurei influenciar. A presente crise na Europa está, a meu ver, grávida, não de uma alternativa progressiva, mas sim de forças radicalmente regressivas, com capacidade para provocar um banho de sangue, extinguindo do mesmo passo qualquer esperança em desenvolvimentos progressivos por várias gerações vindouras.
Por ter estes pontos de vista, tenho sido acusado, por vozes radicais bem intencionados, como um “derrotista”; como um menshevique do nosso tempo que incansavelmente se empenha a favor de esquemas cujo objetivo é salvar o atual sistema sócio-económico europeu insustentável. Um sistema que representa tudo aquilo a que um radical se deveria opor e lutar contra: uma União Europeia anti-democrática, irreversivelmente neoliberal, altamente irracional, transnacional, que não dispõe de capacidade praticamente nenhuma para evoluir no sentido de uma comunidade verdadeiramente humanista, dentro da qual as nações da Europa possam respirar, viver e desenvolver-se. Esta crítica, confesso, dói. E dói porque ela contém bem mais do que um grão de verdade.
Na verdade, eu partilho o ponto de vista de que a União Europeia é um cartel fundamentalmente anti-democrático, irracional, que colocou os povos da Europa no caminho da misantropia, do conflito e da recessão permanente. E também sou sensível à crítica de que tenho feito campanha por uma agenda fundada no pressuposto de que a esquerda foi, e continua a estar, completamente derrotada. Por isso, sim, neste sentido, sinto-me compelido a reconhecer que desejaria que a minha campanha fosse de um outro género; preferiria estar promovendo uma agenda radical cuja razão de ser fosse a substituição do capitalismo europeu por um sistema diferente, mais racional – em vez de simplesmente fazer campanha pela estabilização do capitalismo europeu, o qual está em contradição com a minha definição do que será uma boa sociedade.
Neste ponto, talvez seja pertinente a emissão de uma confissão de segunda ordem: a confissão de que… as confissões tendem a ser auto-justificativas. De facto, as confissões estão sempre à beira do que John von Neumann disse uma vez sobre Robert Oppenheimer, ao ouvir que o seu ex-diretor do Projeto Manhattan havia se tornado militante anti-nuclear e confessou a culpa sobre a sua contribuição para as carnificinas em Hiroshima e em Nagasaki. As palavras cáusticas de Von Neumann foram estas:
“Ele está confessando o pecado a fim de reclamar a glória.”
Felizmente, não sou nenhum Oppenheimer e, portanto, não vai ser muito difícil de evitar a confissão de múltiplos pecados como meio de auto-promoção. Fá-lo-ei antes como uma janela a partir da qual possamos examinar o meu ponto de vista sobre o repugnante capitalismo europeu, emerso em crise, profundamente irracional, cuja implosão, apesar de seus muitos males, deve ser evitada a todo o custo. Trata-se de uma confissão para convencer os radicais de que temos uma missão contraditória: deter o capitalismo europeu na sua queda-livre, a fim de comprar o tempo de que precisamos ainda para formular a sua alternativa.
2. Por que razão marxista?
Quando escolhi a minha tese de doutoramento, em 1982, escolhi propositadamente um tópico altamente matemático e um tema que Marx achava ser irrelevante. Quando, mais tarde, embarquei numa carreira acadêmica, como professor em departamentos de economia convencionais, o contrato implícito entre mim e as direções universitárias que me ofereceram esses lugares foi que eu ensinasse o tipo de teoria económica que não deixava espaço para Marx. No final da década de 1980, sem que eu o soubesse, fui contratado pelo Departamento de Economia da Universidade de Sydney, por forma a excluir um candidato de esquerda. Em seguida, depois de voltar para a Grécia, no ano 2000, eu apostei em George Papandreou, na esperança de ajudar a conter o regresso ao poder de uma ressurgente direita, empenhada em empurrar a Grécia para uma posição xenófoba (tanto internamente, com a repressão sobre os trabalhadores imigrantes, como em política externa). Como todo o mundo sabe, agora, o partido do senhor Papandreou não apenas falhou na travagem da xenofobia, como, no final, acabou por presidir à mais virulenta das políticas macroeconómicas neoliberais que se promoveram entre os chamados “resgates” na Zona Euro, desta forma, involuntariamente, fazendo com que os nazistas regressassem às ruas de Atenas. Embora eu me tenha demitido de assessor do senhor Papandreou, no início de 2006, transformando-me no mais feroz crítico do seu governo e da sua desastrosa gestão da implosão grega pós-2009, a minha intervenção no debate público sobre a Grécia e a Europa (por exemplo, a Modesta Proposta para resolver a Crise do Euro, de que fui co-autor e pela qual tenho feito campanha) não contém o mais leve traço de marxismo.
Tendo em vista este longo caminho feito na academia e os debates políticos na Europa em que intervim, pode parecer surpreendente ouvir assumir-me (“come out of the proverbial closet”) como marxista. Este tipo de declarações não surge naturalmente em mim. Eu desejaria poder evitar hetero-definições (ou seja, ser definido pela cosmogonia e método de uma outra pessoa). Marxista, hegeliano, keynesiano, humeano, eu tenho uma tendência natural para dizer que não sou nada destas coisas; que passei os meus dias tentando tornar-me a abelha de Francis Bacon: uma criatura que recolhe o néctar de um milhão de flores e o transforma, nas suas entranhas, em algo de novo, algo de próprio, algo que deve qualquer coisa a todas as plantas mas não se deixa definir por uma única flor. Infelizmente, isso seria falso e uma forma muito pouco apropriada de começar uma… confissão.
Na verdade, Karl Marx foi o responsável por elaborar a minha perspectiva do mundo em que vivemos, desde a minha infância até o dia de hoje. Não é algo que eu me voluntarie muito para abordar na “sociedade educada”, nestes dias, porque a mera menção da palavra M faz as audiências debandar. Mas eu também nunca o neguei. Na verdade, depois de alguns anos a dirigir-me a audiências com as quais eu não partilho o mesmo meio ideológico, tem surgido em mim, recentemente, a necessidade de falar abertamente sobre a influência de Marx no meu pensamento. Para explicar também a razão pela qual, ainda que um marxista impenitente, eu acho que é importante resistir-lhe apaixonadamente, em uma variedade de maneiras. Para sermos, por outras palavras, irregulares no nosso marxismo.
Se toda a minha carreira académica ignorou em grande parte Marx, e as minhas atuais recomendações políticas são impossíveis de descrever como marxistas, por que razão abordar o meu marxismo agora? A resposta é simples: Até mesmo a minha economia não-marxista foi guiada por uma mentalidade fortemente influenciada por Marx. O teórico social radical pode desafiar a economia convencional de duas maneiras diferentes, como eu sempre pensei. Uma maneira de fazer isso é através de crítica imanente. Aceitar os axiomas convencionais e, em seguida, expor suas contradições internas. Dizer: “Não vou contestar as suas suposições, mas eis porque as suas próprias conclusões não são as que decorrem logicamente a partir delas.” Este foi, de fato, o método de Marx na neutralização da Economia Política britânica. Ele aceitou todos os axiomas de Adam Smith e David Ricardo, a fim de demonstrar que, no contexto de suas premissas, o capitalismo era um sistema contraditório. A segunda via que um radical teórico pode prosseguir é, naturalmente, a construção de teorias alternativas às estabelecidas, na esperança de que possam ser levados a sério (que é o que, mais tarde, os economistas marxistas do século 20 têm vindo a fazer).
A minha opinião sobre este dilema sempre foi a de que os poderes estabelecidos nunca são perturbados pelas teorias que embarcam de pressupostos diferentes dos seus próprios. Nenhum economista consagrado vai sequer prestar atenção a um modelo marxista ou neo-ricardiano, por estes dias. A única coisa que pode desestabilizar e genuinamente desafiar os economistas convencionais neoclássicos é a demonstração da inconsistência interna de seus próprios modelos. Foi por essa razão que, desde o início, eu escolhi entrar bem nas “entranhas” da teoria neoclássica e gastar praticamente nenhuma energia a tentar desenvolver modelos alternativos, marxistas, de capitalismo. Os meus motivos para assim proceder foram, assim o sustento, bastante… marxistas (1).
Quando instado a comentar o mundo em que vivemos, em vez de recorrer ao que diz a ideologia dominante sobre o seu funcionamento, eu não tinha outra alternativa senão regressar à tradição marxista que tinha moldado meu pensamento desde que o meu pai metalurgista imprimiu em mim, quando eu ainda era uma criança, o efeito das mudanças tecnológicas e da inovação no processo histórico. Como, por exemplo, a passagem da Idade do Bronze para a Idade do Ferro acelerou a história; como a descoberta do aço acelerou o tempo histórico por um fator de dez; e como as tecnologias de informação com base no silício são fator de rápidas descontinuidades sócio-económicas e históricas.
Este constante triunfo da razão humana sobre os nossos meios tecnológicos e a natureza, que também serve para expor periodicamente a situação de atraso das nossas relações e convenções sociais, é um insubstituível lampejo que devo a Marx. A sua perspectiva materialista histórica foi reforçada pelas formas mais interessantes e inesperadas. Quem quer que já tenha assistido a um episódio de Star Trek Voyager intitulado “um piscar de olhos”, vai reconhecer uma maravilhosa representação do funcionamento do materialismo histórico em quarenta e cinco minutos; uma surpreendente narrativa sobre o processo pelo qual o desenvolvimento dos meios de produção gera os avanços tecnológicos que constantemente socavam a superstição e fornecem os impulsos históricos que, de uma forma não-linear, dão origem a novas etapas de civilização.
O meu primeiro encontro com os textos de Marx veio muito cedo na vida, como resultado dos estranhos tempos em que cresci, com a Grécia a sair do pesadelo da ditadura neo-fascista de 1967-74. O que chamou a minha atenção foi o insuperável, hipnotizante, dom de Marx para escrever um dramático guião para a história humana, na verdade a danação humana, entrelaçado com a possibilidade muito real de salvação e de uma autêntica espiritualidade. Ao ler as linhas, como…
“a sociedade burguesa moderna, com suas relações de produção, de troca e de propriedade, uma sociedade que conjurou um tão gigantesco conjunto de meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não é capaz de controlar os poderes do mundo infernal que ele próprio chamou com os seus feitiços.” (Manifesto do Partido Comunista, 1848)
Foi como deparar com a reunião de, por um lado, o Dr. Fausto e o Dr. Frankenstein, e, por outro lado, de Adam Smith e David Ricardo, criando uma narrativa povoada por personagens (trabalhadores, capitalistas, funcionários, cientistas) que foram as dramatis personae da história, os agentes que se esforçaram por utilizar a razão e a ciência no contexto da capacitação da humanidade, enquanto, contrariamente às suas intenções, desencadearam efetivamente as forças demoníacas que foram usurpando e subvertendo a sua própria liberdade e humanidade.
Esta perspectiva dialética, em que tudo nos aparece grávido com seu oposto, e os ansiosos olhos com que Marx vislumbrou o potencial de mudança na aparentemente mais constante e imutável das estruturas sociais, ajudou-me a compreender as grandes contradições da era capitalista. Dissolveu o paradoxo de uma idade que gerou a mais notável riqueza e, no mesmo fôlego, a mais gritante pobreza. Hoje, analisando a crise europeia, a crise de realização nos Estados Unidos, a estagnação a longo-termo do capitalismo japonês, a maioria dos comentadores não consegue apreciar o processo dialético desenvolvendo-se bem sob o seu nariz. Eles reconhecem a montanha de dívidas e perdas bancárias mas negligenciam o lado oposto da mesma moeda, a sua antítese: a montanha de poupanças ociosas que estão “congeladas” pelo medo e, assim, deixam de ser convertidas em investimentos produtivos. Uma atenção tipicamente marxista às oposições binárias poderia ter aberto os seus olhos…
Uma das principais razões por que a opinião estabelecida falha completamente a chegada a termos com a realidade contemporânea é que ela nunca compreendeu a “produção conjunta”, dialeticamente tensa, de dívidas e de excedentes de produção, de crescimento e de desemprego, de riqueza e de pobreza, de espiritualidade e de depravação, do bem e do mal, de novas perspectivas de prazer e novas formas de escravidão, de liberdade e de apoderamento do outro; esta mistura de oposições binárias para as quais o guião dramático de Marx nos alertara, como sendo as fontes da astúcia da história.
Desde os meus primeiros passos a pensar como um economista, até ao presente dia, ocorreu-me que Marx tinha feito uma “descoberta”, que deve permanecer no coração de qualquer análise útil do capitalismo. Foi, é claro, a descoberta de uma outra oposição binária profundamente entranhada no trabalho humano. A oposição entre as duas “naturezas” muito diferentes do trabalho: (i) o trabalho como atividade criadora de valor (“cuspidora de fogo”) que nunca pode ser especificada ou quantificada com antecedência (e, portanto, impossível de mercantilização), e (ii) o trabalho como uma quantidade (por exemplo: número de horas trabalhadas) que está à venda e tem um preço. É isso que distingue o trabalho de outros insumos da produção, tais como a eletricidade: a sua dupla e contraditória natureza. Uma diferenciação e contradição que a Economia Política negligenciou, antes de Marx aparecer, e que os economistas convencionais se recusam firmemente a reconhecer ainda hoje.
Tanto a energia elétrica como o trabalho podem ser pensados como mercadorias. Na verdade, os empregadores usam todo o seu engenho – bem como o dos seus gestores de recursos humanos – para quantificar, medir e homogeneizar o trabalho. Entretanto, aspirantes a empregados passam por um espremedor, numa ansiosa tentativa para mercantilizar a sua mão-de-obra, escrevendo e re-escrevendo o seu CV, a fim de se retratarem como fornecedores de quantificáveis unidades de trabalho. E é aí que está o busílis! Pois que se os trabalhadores e os empregadores tiverem sucesso na mercantilização integral do trabalho, o capitalismo irá perecer. Esta é uma percepção sem a qual o capitalismo, na sua tendência para gerar crises, nunca pode ser totalmente entendido e, além disso, uma visão a que ninguém tem acesso sem ter tido algum grau de exposição ao pensamento de Marx.
3. A ficção científica torna-se documentário
No clássico filme 1953 The Invasion of the Body Snatchers (2), a força alienígena não nos ataca de frente, ao contrário de, por exemplo, A Guerra dos Mundos de H. G. Wells. Em vez disso, os seres humanos são tomadas por dentro, até que nada resta do seu espírito e das suas emoções humanas. Os seus corpos são tudo o que resta, como carapaças que antes continham uma vontade livre e que agora trabalham, passam pelos movimentos da “vida” de todos os dias e cumprem a sua função como simulacros humanos “libertos” da inquantificável sutileza da natureza humana. Este processo é equivalente à transformação que será necessário operar para tornar o trabalho humano um insumo não muito distinto das sementes, da eletricidade, ou mesmo dos robôs. Em linguagem moderna, é o que se teria verificado se o trabalho humano se tornasse perfeitamente redutível ao capital humano e, portanto, apto para inserção nos modelos dos economistas vulgares.
Já que pensamos nisso, todas e cada uma das teorias econômicas não-marxistas que tratam dos insumos de produção humanos e não-humanos como intercambiáveis e como quantidades qualitativamente equivalentes, assume que a desumanização do trabalho humano é completa. Mas, se alguma vez esta pudesse ser concluída, o resultado seria o fim do capitalismo como um sistema capaz de criar e distribuir valor. Para começar, uma sociedade de simulacros desumanizados, da autómatos, assemelhar-se-ia a um relógio mecânico cheio de dentes e de molas, cada um com a sua própria função exclusiva, conjuntamente constituindo um único “bem”: a contagem do tempo. No entanto, se essa sociedade contivesse nada mais que outros autómatos, a contagem do tempo não seria um “bem”. Seria uma “saída”, sem dúvida, mas porquê um “bem”? Sem humanos reais para experimentar a função do relógio, não pode haver uma tal coisa como um “bem” ou um “mal”. Uma “sociedade” de autómatos, tal como os relógios mecânicos ou algum circuito integrado, seria cheia de partes constitutivas, demonstrando uma funcionalidade, mas nada que possa ser utilmente descrito como “bem” ou “mal”, ou mesmo como “valor”.
Assim, em resumo, se o capital alguma vez conseguir quantificar, e posteriormente, totalmente mercantilizar, o trabalho, como está constantemente a tentar fazer, também espremerá do mesmo passo aquela indeterminada, recalcitrante liberdade humana dentro do trabalho que permite a geração de valor. O brilhante vislumbre de Marx na essência da crise capitalista foi justamente este: quanto maior for o sucesso do capitalismo em tornar o trabalho uma mercadoria, menor será o valor de cada unidade de produção que gera, menor a taxa de lucro e, em última análise, mais perto ficará a próxima desagradável recessão da economia como um sistema. A representação da liberdade humana como uma categoria econômica é única em Marx, tornando possível uma distintamente dramática e analiticamente arguta interpretação da propensão do capitalismo para arrebatar a recessão, e até mesmo a depressão, das garras de “crescimento”.
Quando Marx estava escrevendo que o trabalho é fogo vivo dador de forma; a transitoriedade das coisas; a sua temporalidade; ele estava fazendo a maior contribuição que qualquer economista já fez, desde sempre, à nossa compreensão da aguda contradição sepultada no DNA do capitalismo. Quando ele retratou o capital como “…uma força à qual nos temos que submeter… [ele] desenvolve uma energia muito cosmopolita, universal, que rompe com todos os limites e todas as fronteiras, colocando-se a si próprio como a única política, a única universalidade, o único limite e o único vínculo” (3), ele estava a sublinhar a realidade de que o trabalho pode ser comprado por capital líquido (isto é, dinheiro), na sua forma mercadoria, mas que vai sempre carregar consigo uma vontade hostil para com o comprador capitalista. Mas Marx não estava apenas, com isso, fazendo uma observação psicológica, filosófica ou política. Ele estava, em vez disso, a fornecer uma notável análise da razão porque, no momento em que o trabalho (como uma atividade não quantificável) perde esta hostilidade, ela se torna estéril, incapaz de produzir valor.
Em um tempo em que os neoliberais aprisionaram a maioria nos seus tentáculos teóricos, ruminando incessantemente a ideologia do aumento da produtividade da mão-de-obra na tentativa de melhorar o seu nível de competitividade, a fim de criar “crescimento”, etc., a análise de Marx oferece um poderoso antídoto. O capital nunca poderá triunfar na sua luta para transformar trabalho em um insumo infinitamente elástico e mecanizado sem destruir-se a si próprio. É isso que nem os neoliberais nem os keynesianos alguma vez compreenderão! “Se toda a classe dos trabalhadores assalariados fosse aniquilada por máquinas”, escreveu Marx “quão terrível que seria para o capital, que, sem o trabalho assalariado deixa de ser capital!” (4). Quanto mais o capital se aproxima da sua “vitória final” sobre o trabalho, mais a nossa sociedade se parece com um outro filme de ficção científica. Um filme que havia sido prefigurado por, esse mesmo, Karl Marx: The Matrix.
O que é único em The Matrix é que, neste filme, a rebelião dos nossos artefatos não foi apenas um simples caso de criador-cídeo. Ao contrário da Coisa de Frankenstein, que ataca os humanos irracionalmente, fruto da sua pura angústia existencial, ou das máquinas da série O Exterminador, que só querem exterminar todos os seres humanos com vista a consolidar no futuro uma posição dominante no planeta, em The Matrix, o emergente império das máquinas está empenhado em conservar a vida humana para os seus próprios fins; em nos manter vivos, como um recurso primário. O Homo Sapiens, não obstante ter sido quem inventou a escravidão humana, e apesar do nosso histórico sem precedentes de infligir indescritíveis horrores aos nossos semelhantes, não poderia ter sequer imaginado o desprezível papel que as máquinas lhe atribuiriam em The Matrix: amarrados em engenhocas que nos imobilizaram para economizar energia, as máquinas alimentaram-nos à força com uma mistura de nutrientes nauseabundos, adequados para a máxima geração de calor.
No entanto, as máquinas rapidamente descobriram que os humanos não duram muito tempo quando o seu espírito está quebrado e a sua liberdade lhes é totalmente negada. A nossa curiosa necessidade de liberdade estava, deste modo, ameaçando a eficácia das suas fábricas de energia alimentadas a humanos. Assim, as máquinas proveram-nos com aquilo que Marx teria chamado de uma “falsa consciência”. Elas forçaram não apenas nutrientes para os nossos corpos, mas também ilusões nas nossas mentes, a que o nosso espírito almejava. De forma engenhosa, elas ligaram elétrodos aos nossos crânios, com os quais alimentaram diretamente em nosso cérebro, uma vida virtual, mas absolutamente realista, que, como seres humanos, poderíamos suportar. Enquanto nossos corpos continuavam brutalmente conetados a seus geradores de energia, alimentando-os com a electricidade proveniente de nosso calor corporal, o programa de computador das máquinas conhecido como Matrix enchia as nossas mentes com uma vida imaginária, ilusória, mas no entanto muito “real” e “normal”. Dessa forma, nossos corpos, alheios à realidade, poderiam viver durante décadas, para grande utilidade das máquinas responsáveis por gerar energia suficiente para manter o seu novo mundo. O olvido humano revelou-se um factor de produção determinante na economia de Matrix.
“As máquinas têm adquirido o poder diretor sobre o trabalho humano e seus produtos” (5). Foi desta forma que Marx descreveu a “ascenção das máquinas”, como um cruzamento entre uma tragédia shakespeariana e outra da Grécia antiga, que evoluiu contra o pano de fundo de uma nova revolução industrial, em que uns poucos eram proprietários das máquinas e os muitos trabalhavam nelas. A tese de Marx era que, no universo do capital, nós já somos trans-humanos. The Matrix não é futurologia. Ela tem sido parte de nossa realidade já há algum tempo! Trata-se de um documentário de grande qualidade sobre a nossa época ou, para ser mais preciso, da tendência da nossa época para expulsar para fora do trabalho humano todas as suas características que o impedem de se tornar totalmente flexível, perfeitamente quantificado, infinitamente divisível. Quanto a Marx, o seu papel foi o de nos providenciar a opção pela “pílula vermelha” (6); a possibilidade de olharmos bem em face, sem o calmante ilusório de ideologia burguesa, a feia realidade de um sistema que produz as crises e a miséria como seu rumo próprio, por desígnio, e certamente não por acaso.
Leia-se qualquer manual de gestão, qualquer artigo em alguma revista sobre a economia da educação, todos as diretivas que tenham vindo da União Europeia em matéria de formação, escolas, universidades, programas de aumento da produtividade, competitividade, etc., o que você irá reconhecer imediatamente é que já estamos vivendo em nossa própria versão da Matrix. Os esforços inexoráveis do capital com o objetivo de quantificar e usurpar o trabalho infetam todos esses documentos, que estão promovendo uma sociedade em que as pessoas são aspirantes a se tornarem autómatos. Uma ideologia cuja extensão programática é a transformação do trabalho humano em uma versão da energia térmica, que permite às máquinas uma maior margem de manobra para a função e para a fabricação de outras máquinas, às quais, tragicamente, falta a capacidade de gerar… valor.
Neste sentido, a nossa Matrix só pode ser provisória, uma vez que quanto mais se aproxima da sua aperfeiçoada versão em filme, o mais provável é a ocorrência de uma monumental crise, com os valores económicos a cair abaixo do chão e a chegada de uma grande recessão. A ascenção das máquinas é revertida e o investimento nelas torna-se negativo. Nesta perspectiva marxiana, voltando ao filme uma vez mais, o bando de seres humanos libertos, nas entranhas da sociedade das máquinas (que dirigem a ressurreição humana contra as máquinas), simboliza a resistência humana a tornar-se capital humano; a irredutível e inerente hostilidade para com a quantificação que permanece incorporada dentro do coração e da mente, mesmo daqueles que gastam todas as suas energias tentando se tornarem mercantilizados, em nome de seus empregadores. A deliciosa ironia, nesta matéria, é que a própria hostilidade que o capital está tentando erradicar no trabalho é o que faz com que o trabalho seja capaz de produzir valor, permitindo assim ao capital que se acumule.
4. O que Marx fez por nós?
Paul Samuelson, certa vez, denegriu Karl Marx, chamando-lhe um ricardiano menor. Quase todas as escolas de pensamento, incluindo alguns economistas progressistas, gostam de alardear que, embora Marx seja uma figura poderosa, muito pouco, se alguma coisa, do seu contributo, continua relevante hoje em dia. Permitam-me que discorde.
Além de ter capturado o drama básico da dinâmica do capitalismo (veja-se a seção anterior), Marx deu-me as ferramentas com as quais me tornei imune aos efeitos tóxicos da propaganda dos inimigos neoliberais da verdadeira liberdade e racionalidade. Por exemplo, é fácil sucumbir à idéia de que a riqueza é produzida em privado e, em seguida, apropriada por um Estado quase-ilegítimo, através da tributação, se não tivermos sido expostos antes à argumentação pungente de Marx de que é exatamente o contrário que sucede: a riqueza é produzida coletivamente e, em seguida, apropriada em privado por intermédio de relações sociais de produção e direitos de propriedade que dependem, para sua reprodução, quase exclusivamente, da falsa consciência. Da mesma forma com o conceito de “autonomia”, que ressoa tão bem neste nosso mundo da “pós-modernidade”. Ele também é produzido coletivamente, por meio da dialética do reconhecimento mútuo, e, em seguida, apropriado em privado. Se Marx tivesse sido levado a sério (tanto por marxistas como pelos seus detratores, é preciso dizê-lo), muitas inanidades que se acumularam ao longo do tempo nos anais dos estudos culturais teriam sido evitadas.
Phil Mirowski apontou recentemente (7), com grande eloquência, o sucesso dos neoliberais em convencer uma grande variedade de pessoas de que os mercados não são apenas um meio útil mas também um inalienável fim em si próprios. Que enquanto a ação coletiva e as instituições públicas são sempre incapazes de “encontrar o caminho certo”, a desenfreada operação descentralizada de múltiplos interesses privados gera uma espécie de providência secular e divina que garantidamente produz não só os resultados certos, mas também os mais adequados desejos, carácteres, até mesmo ethos. O melhor exemplo da grosseria neoliberal é, evidentemente, o debate sobre as alterações climáticas e o que fazer a seu respeito. Os neoliberais vieram pressurosamente defender o ponto de vista de que, se há alguma coisa a ser feita, ela deve tomar a forma da criação de um quase-mercado de “males” (p. ex., um regime de comércio das emissões) já que somente os mercados “sabem” como atribuir preços adequadamente a bens e a males. Para entender porque razão este quase-mercado está condenado ao fracasso e, mais importante ainda, de onde vem a motivação para tais “soluções”, não faremos mal em familiarizarmo-nos com a lógica da acumulação de capital que Marx descreveu e que Michal Kalecki adaptou a um mundo dominado por oligopólios em rede.
No século 20, os dois movimentos políticos que buscaram as suas raízes no pensamento de Marx foram os partidos comunistas e social-democratas. Os dois, para além de outros erros (e, na verdade, crimes) cometidos, em seu próprio detrimento, não conseguiram seguir as indicações de Marx num capítulo fundamental: em vez de abraçar a liberdade e a racionalidade como suas palavras de ordem e conceitos organizativos, eles optaram pela igualdade e pela justiça, deixando a liberdade para os neoliberais. Marx foi categórico: O problema com o capitalismo não é que seja injusto, mas que é irracional, pois que como sua prática habitual condena gerações inteiras à privação e ao desemprego, transformando os próprios capitalistas em autómatos angustiados, também eles escravizados pelas máquinas que supostamente possuem, vivendo em permanente medo de que, a menos que mercantilizem totalmente os outros seres humanos, para que possam servir mais eficientemente a acumulação de capital, deixarão eles próprios de ser… capitalistas.
Assim, se o capitalismo é injusto é porque escraviza toda a gente, trabalhadores e capitalistas, como em The Matrix; ele desperdiça recursos humanos e naturais; espalha a infelicidade, a iliberdade e as crises a partir das mesmas “linhas de produção” que bombeiam artefatos notáveis e riquezas inauditas. Depois de não ter conseguido modelar uma crítica do capitalismo em termos de liberdade e racionalidade, como Marx pensava essencial, a social-democracia e a esquerda em geral permitiram aos neoliberais que usurpassem o manto da liberdade e ganhassem assim um espetacular triunfo no concurso das aptidões e ideologias (8).
Ainda no que respeita ao triunfo neoliberal, talvez a sua mais importante dimensão seja aquilo que veio a ser conhecido como o “défice democrático”. Rios de lágrimas de crocodilo fluiram àcerca do declínio das nossas grandes democracias durante as últimas três décadas de financeirização e de globalização. Marx teria rido muito e bem alto daqueles que parecem ficar surpreendidos, ou contrariados, pelo “défice democrático”. Qual era o grande objetivo por detrás do liberalismo do século XIX? Ele foi, como Marx não se cansou de salientar, separar a esfera económica da esfera política e confinar as decisões políticas a esta última, deixando a esfera económica para o capital. O que estamos assistindo hoje é a um esplêndido sucesso do liberalismo na realização disto. Dê uma olhada na África do Sul, hoje, mais de duas décadas depois de Nelson Mandela ter sido libertado e de a esfera política ter, finalmente, abraçado toda a população. A situação do ANC foi que, a fim de lhe ser permitido dominar a esfera política, teve que aceitar a impotência sobre o económico. E se você pensa de outra forma, sugiro que converse com as dezenas de mineiros alvejados a tiro por guardas armados pagos por seus empregadores, após terem ousado exigir um aumento salarial.
5. Por que razão irregular? Os dois erros imperdoáveis de Marx
Tendo explicado a razão pela qual devo todo entendimento que possa ter do nosso mundo social, em grande medida, a Karl Marx, agora quero explicar por que eu continuo extremamente zangado com ele. Por outras palavras, vou descrever brevemente porque eu sou, por escolha própria, um marxista irregular ou inconsistente. Marx cometeu dois erros espetaculares, sendo um deles um erro de omissão e o outro de comissão. Estes erros são importantes, até esta data, porque eles dificultam a eficácia da esquerda no combate à misantropia organizada, especialmente na Europa.
O primeiro erro de Marx, que eu sugiro seja devido a omissão, foi que ele foi insuficientemente dialéctico, insuficientemente reflexivo. Ele não conseguiu fazer a devida reflexão, e manteve um prudente silêncio, sobre o impacto que sua própria teorização tinha sobre o mundo que estava teorizando. Sua teoria é de um poder discursivo excepcional, e Marx tinha noção do seu poder. Por que razão ele não mostrou preocupação com que seus discípulos, pessoas com uma melhor compreensão dessas ideias fortes que, em média, os trabalhadores, pudessem usar o poder que lhes era assim cometido, por via das idéias do próprio Karl Marx, a fim de abusar de outros companheiros, construir a sua própria base de poder, ganhar posições de influência, seduzir estudantes impressionáveis, etc.?
Para dar um segundo exemplo, sabemos que o sucesso da Revolução Russa levou o capitalismo, na devida altura, a um recuo estratégico, a conceder segurança social e serviços nacionais de saúde, até mesmo à ideia de obrigar os ricos a pagar para que massas de estudantes pobres pudessem frequentar aulas em universidades progressistas. Ao mesmo tempo, nós também vimos como a fanática hostilidade para com a União Soviética, manifestada desde a primeira hora com uma série de invasões, despertou a paranóia entre os socialistas e criou um clima de medo que se revelou particularmente fértil para figuras como José Estaline e Pol Pot. Marx nunca entreviu a chegada deste processo dialético. Ele simplesmente não considerou a possibilidade de que a criação de um Estado dos trabalhadores forçasse o capitalismo a tornar-se mais civilizado, enquanto o Estado dos trabalhadores seria infetado com o vírus do totalitarismo à medida que a hostilidade do resto do mundo (capitalista) para com ele crescia cada vez mais.
O segundo erro de Marx, aquele que eu caraterizo como de comissão, foi pior. Foi a sua assunção de que a verdade sobre o capitalismo poderia ser descoberta na matemática dos seus modelos (os chamados “esquemas de reprodução”). Este foi o pior desserviço que Marx poderia ter prestado ao seu próprio sistema teórico. O homem que nos equipou com a liberdade humana, como sendo um conceito económico de primeira ordem; o estudioso que elevou a indeterminação radical a ocupar o seu devido lugar na economia política; foi a mesma pessoa que acabou por jogar com modelos algébricos simplistas, em que unidades de trabalho foram, naturalmente, totalmente quantificadas, esperando contra toda a esperança retirar dessas equações algumas informações adicionais sobre o capitalismo. Depois da sua morte, os economistas marxistas desperdiçaram longas carreiras entregues ao mesmo tipo de mecanismo escolástico, acabando com o que Nietzsche uma vez descreveu como “pedaços de mecanismo que chegam ao sofrimento”. Totalmente imersos em irrelevantes debates sobre o “problema da transformação” e o que fazer sobre isso, tornaram-se finalmente uma espécie quase extinta, enquanto o colosso neoliberal ia esmagando todas as dissidências no seu caminho.
Como pôde Marx iludir-se a este ponto? Por que será que ele não reconheceu que nenhuma verdade sobre o capitalismo poderia alguma vez brotar de um qualquer modelo matemático, por mais brilhante que fosse o seu criador? Não tinha ele os instrumentos intelectuais para perceber que as dinâmicas capitalistas emergem da parte não quantificável do trabalho humano; ou seja, a partir de uma variável que não poderá nunca ser bem definida matematicamente? É claro que sim, pois que ele mesmo forjou essas ferramentas! Não, a razão para o seu erro é um pouco mais sinistra: tal como os economistas vulgares que ele tão brilhantemente denunciou (e que continuam a dominar os departamentos de Economia hoje em dia), ele cobiçou o poder que a “prova” matemática lhe daria.
Se estou certo, Marx sabia o que estava fazendo. Ele compreendeu, ou tinha a capacidade de saber, que uma teoria compreensiva do valor não pode ser acomodada dentro de um modelo matemático de uma economia capitalista dinâmica e em crescimento. Ele estava, não tenho qualquer dúvida, ciente de que uma boa teoria económica deve respeitar a máxima de Hegel de que “as regras do indeterminado são elas próprias indeterminadas”. Em termos económicos, isto significa o reconhecimento de que o poder de mercado e, consequentemente, a lucratividade, dos capitalistas não era necessariamente redutível à sua capacidade de extrair trabalho dos seus empregados; que alguns capitalistas podem extrair mais de um dado conjunto de trabalhadores ou de uma determinada comunidade de consumidores, por razões que são externas à sua própria teoria.
Infelizmente, esse reconhecimento seria o mesmo que aceitar que as suas “leis” não eram imutáveis. Ele teria de conceder, perante vozes concorrentes no movimento sindical, que sua teoria era indeterminada e que, portanto, os seus pronunciamentos não poderia ser tidos como certos e inequívocos. Que eles seriam permanentemente provisórios. Mas Marx sentia um irreprimível desejo de esmagar pessoas como o cidadão Weston (9) que ousou preocupar-se com o facto de que um aumento salarial (conseguida através de uma greve) poderia revelar-se uma vitória pírrica se os capitalistas empurrassem de seguida os preços para cima. Em vez de simplesmente argumentar contra pessoas como Weston, Marx obstinou-se em provar com precisão matemática que eles estavam errados, eram não-científicos, vulgares, indignos de atenção séria.
Houve ocasiões em que Marx percebeu, e confessou, ter errado do lado do determinismo. Depois que ele se mudou para o terceiro volume de O Capital, viu que, mesmo uma complexidade mínima (por ex., assumindo diferentes graus de intensidade de capital em diferentes setores) descarrilava o seu argumento contra Weston. Mas tão empenhado estava ele com o seu monopólio sobre a verdade que cavalgou sobre o problema, de forma assombrosa mas um pouco às cegas, impondo por fiat o axioma que, no final, confirmava a sua original “prova”; prova essa com a qual ele já batera antes na cabeça do cidadão Weston. Estranhos são os rituais do vazio e tristes, também, quando conduzidos por mentes excepcionais, como a de Karl Marx e um número considerável de seus discípulos no século XX.
Essa vontade de ter o modelo ou argumento “completo”, “fechado”, ou seja, a “palavra final”, é algo que eu não posso perdoar a Marx. Ela revelou-se, afinal de contas, responsável por uma grande parte de erro e, mais significativamente ainda, de autoritarismo. Erros e autoritarismo que são, em grande parte, responsáveis pelo estado atual de impotência da esquerda como uma força para o bem e como contraponto aos abusos da razão e da liberdade que a tripulação neoliberal comete nos dias de hoje.
6. A ideia radical de Keynes
Keynes era um inimigo da esquerda. Ele gostava do sistema de classes que o gerou, não queria ter nada a ver (pessoalmente) com a gentinha “lá de baixo”, tendo trabalhado duro e inteligentemente a fim de arranjar ideias que permitissem ao capitalismo sobreviver contra a sua própria propensão para espasmos potencialmente mortais. Um pensador liberal burguês, com abertura mental e espírito livre, Keynes tinha o raro dom de não se esquivar a um desafio aos seus próprios pressupostos. No meio da grande depressão, ele não teve qualquer problema em quebrar a tradição marshalliana que havia sido o seu legado. Ao perceber que o emprego se afundava mais ainda à medida que os salários diminuiam, e que os investimentos se recusavam a subir mesmo após um longo período de taxas de juro a zero, ele estava preparado para rasgar os “manuais” e re-considerar o capitalismo à sua maneira.
O seu radical re-pensamento tinha de começar em algum lugar. Começou quando Keynes quebrou fileiras com os seus pares, fazendo o impensável: revisitando a briga entre David Ricardo e Thomas Malthus e tomando o partido do clérigo. Em termos inequívocos, no meio da grande depressão, escreveu: “Se ao menos Malthus, em vez de Ricardo, tivesse sido o tronco fundador da economia do séc. XIX, o mundo seria hoje um lugar incomparavelmente mais sábio e mais rico!” (10). Com esta declaração incendiária, Keynes não estava a subscrever a posição de Malthus favorável aos rentistas aristocráticos, nem as suas opiniões teológicas sobre o poder redentor do sofrimento (11). Em vez disso, Keynes sufragou o cepticismo de Malthus quanto: (a) à sabedoria daqueles que procuram uma teoria do valor que seja consistente com a complexidade e dinâmica do capitalismo e (b) à convicção de Ricardo, que Marx mais tarde herdou, de que uma persistente depressão é incompatível com o capitalismo.
Por que razão Keynes não convergiu com Marx, que foi afinal de contas o primeiro economista político a explicar as crises como elementos constitutivos da dinâmica capitalista? Porque a Grande Depressão não foi como as outras crises, do tipo que Marx tinha explicado tão bem. No Vol. I de O Capital Marx contou a história das recessões redentoras, ocorridas devido à dupla natureza do trabalho e dando origem a períodos de crescimento que estão grávidos com a próxima recessão que, por sua vez, gera a próxima retoma, e assim por diante. No entanto, não havia nada de redentor na Grande Depressão. A depressão dos anos 1930 era apenas isso: uma depressão que se comportava muito como um equilíbrio estático – um estado da economia que parecia perfeitamente capaz de se perpetuar a si próprio, com a esperada recuperação recusando-se obstinadamente a surgir ao longo do horizonte, mesmo depois de a taxa de lucro recuperar, em resposta ao colapso dos salários e das taxas de juros.
A preciosa “descoberta” de Keynes sobre o capitalismo era dupla: (A) Era um sistema inerentemente indeterminado, apresentando o que os economistas de hoje podem referir como uma infinitude de equilíbrios múltiplos, alguns dos quais se compatibilizavam com o desemprego em massa, e (B) Ele poderá cair, de um momento para o outro, imprevisivelmente, em um desses terríveis equilíbrios sem rima ou razão, apenas porque uma parcela significativa dos capitalistas temeram que ele pudesse fazê-lo.
Em linguagem simples, isto significa que, no que diz respeito à previsão de depressões e da sua superação pelas forças do mercado, “raios nos partam se sabemos!”; que não temos maneira de saber o que o capitalismo irá fazer amanhã, mesmo que ele hoje pareça ir de vento em popa; que pode muito bem cair redondo no chão e recusar voltar a erguer-se novamente. A noção keynesiana de “espíritos animais” representou uma ideia profundamente radical, capturando a radical indeterminação sepultada dentro do prórpio ADN do capitalismo. Uma ideia que Marx introduziu, pela primeira vez, com a sua análise da natureza dialética do trabalho, mas depois, no processo de escrita de O Capital, atrofiou, por forma a estabelecer os seus teoremas como provas matemáticas incontestáveis. De todas as passagens na Teoria Geral de Keynes, esta ideia da natureza caprichosamente auto-destrutiva do capitalismo é aquela que precisamos de recuperar e usar para re-radicalizar o marxismo.
7. A lição da Senhora Thatcher para os radicais europeus de hoje
Eu me mudei para a Inglaterra para frequentar a universidade em Setembro de 1978, seis meses, pouco mais ou menos, antes da vitória da Sr.ª Thatcher que mudou a Grã-Bretanha para sempre. Vendo o governo trabalhista se desintegrar, sob o peso do seu degenerado programa social-democrata, levou-me a um erro de primeira ordem: ao pensamento de que talvez a vitória da Sr.ª Thatcher fosse uma coisa boa, oferecendo às classes média e trabalhadora da Grã-Bretanha um choque curto e forte, necessário para revigorar a política progressiva. Para dar à esquerda a oportunidade de re-pensar a sua posição e de criar uma nova e radical agenda para um novo tipo de política, eficaz e progressiva.
Mesmo enquanto o desemprego duplicava e, em seguida, triplicava, sob as “intervenções” neoliberais radicais de Margaret Thatcher, eu continuei a albergar esperanças de que Lênin tinha razão: “As coisas têm que piorar antes de ficarem melhores”. À medida que a vida se tornou mais agreste, mais estúpida e, para muitos, mais curta, ocorreu-me que eu poderia estar tragicamente errado: as coisas poderiam piorar em perpetuidade, sem nunca chegarem a melhorar. A esperança de que a deterioração dos bens públicos, a diminuição da vida para a maioria, a propagação da privação a todos os cantos da Terra levaria, automaticamente, a um renascimento da esquerda foi apenas isso: esperança!
A realidade foi, no entanto, dolorosamente diferente. A cada volta do torniquete da recessão, a esquerda se tornou mais introvertida, menos capaz de produzir uma convincente agenda progressista e, entretanto, a classe operária estava sendo dividida entre aqueles que saíram da sociedade e os cooptados para a mentalidade neoliberal. A noção de que a deterioração das “condições objectivas” iria, de alguma forma, dar origem a “condições subjetivas” das quais uma nova revolução política iria sair, foi bem e verdadeiramente falsa. Tudo o que surgiu a partir do thatcherismo foram os vigaristas, a extrema financeirização, o triunfo do centro comercial sobre a loja da esquina, a fetichização do alojamento e… Tony Blair.
Em vez de radicalizar a sociedade britânica, a recessão que o governo Thatcher tão cuidadosamente projetou, como parte da sua luta de classes contra o trabalho organizado e contra as instituições públicas da segurança social e de redistribuição que haviam sido criadas no pós-guerra, destruiu permanentemente a própria possibilidade de uma política radical e progressiva na Grã-Bretanha. Na verdade, tornou impossível a própria noção de valores que transcendam aquilo que o mercado determinar como preços “justos”.
A lição que a Sr.ª Thatcher me ensinou, pela via dolorosa, no que se refere à aptidão de uma recessão de longa duração para minar a política progressista e enraizar a misantropia na própria fibra da sociedade, é algo que transporto comigo até à crise europeia de hoje. É, de fato, a mais importante determinante da minha posição em relação à crise do Euro, que tem ocupado quase exclusivamente o meu tempo e o meu pensamento ao longo dos últimos anos. Esta é a razão pela qual tenho prazer em confessar o pecado que me é imputado por críticos radicais da minha posição “menchevique” sobre a Zona Euro: o pecado de ter optado por não propor programas políticos radicais que visem explorar a crise do Euro como uma oportunidade para derrubar o capitalismo europeu, para desmantelar a terrível Zona Euro e para minar a União Europeia dos cartéis e dos banqueiros falidos.
Sim, eu gostaria de apresentar uma agenda radical. Mas, não, não estou disposto a cometer o mesmo erro duas vezes. Que bem é que pudemos alcançar na Grã-Bretanha, no início da década de 1980, promovendo uma agenda de mudança socialista que a sociedade britânica desprezava, enquanto se precipitava de cabeça para a armadilha neoliberal da Sr.ª Thatcher? Precisamente nada. Que bem nos trará hoje o apelo ao desmantelamento da Zona Euro, da própria União Europeia, quando o capitalismo europeu está a fazer o seu melhor para pôr em causa a Zona Euro, a União Europeia e, na verdade, a si próprio?
Uma saída grega, portuguesa ou italiana da Zona Euro, em breve se transformará numa fragmentação do capitalismo europeu, produzindo uma região excedentária em séria recessão, a leste do Reno e ao norte dos Alpes, enquanto o resto da Europa estará encerrado num círculo vicioso de estagflação. Quem você acha que vai beneficiar com isto? A esquerda progressista, que irá renascer como Fénix das cinzas das instituições públicas da Europa? Ou a Aurora Dourada nazi, o sortido dos neo-fascistas, os xenófobos e os vigaristas? Não tenho a menor dúvida de qual destes dois irá beneficiar de uma desintegração da Zona Euro. Eu, por mim, não estou disposto a soprar novos ventos para as velas desta versão pós-moderna dos anos 1930. Se isto significa que sejamos nós, os marxistas apropriadamente irregulares, quem deva tentar salvar o capitalismo europeu de si mesmo, pois que assim seja. Não por amor ou apreço para com o capitalismo europeu, a Zona Euro, Bruxelas, ou o Banco Central Europeu, mas apenas porque queremos minimizar o desnecessário sofrimento humano trazido por esta crise; as inúmeras vidas cujas perspetivas serão ainda mais esmagadas, sem qualquer benefício para as futuras gerações de europeus.
8. Conclusão: que devem fazer os marxistas?
As elites da Europa estão se comportando hoje como um patético conjunto de dirigentes sem rumo, que não entendem nem a natureza da crise a que estão presidindo nem as suas implicações para a sua própria sorte – e muito menos para o futuro da civilização europeia. Atavisticamente, eles estão optando por pilhar os decrescentes recursos dos fracos e despossuídos, a fim de tapar os buracos negros escancarados dos seus banqueiros falidos, recusando-se a reconhecer a impossibilidade da tarefa. Tendo criado uma união monetária que (A) removeu todos os amortecedores de choques da macro-economia da Europa e (B) assegurou que, quando o choque viesse, seria gigantesco, eles estão agora investindo na negação, esperando, irracionalmente, por algum milagre que os deuses possam oferecer, desde que um número suficiente de vidas humanas seja sacrificado no altar da competitiva austeridade.
De cada vez que os beleguins da troika visitam Atenas, Dublin, Lisboa, Madrid; com cada pronunciamento do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia sobre a próxima curva do torniquete da austeridade, a efetuar em Paris ou em Roma, o verso de Berthold Brecht vem à mente: “A força bruta está fora de tempo. Para quê enviar um assassino contratado quando um oficial de justiça serve?” A pergunta é a seguinte: como é que vamos resistir-lhes?
Sempre alerta para a culpa colectiva da esquerda sobre o feudalismo industrial a que condenamos milhões de pessoas, ao longo de décadas, em nome da… política progressista, devo fazer ainda assim um paralelo entre a União Soviética e a Europeia. Apesar das suas grandes diferenças, uma coisa elas têm em comum: a uniforme “linha de partido”, que funciona na perfeição a partir de cima (o Politburo ou Comissão) até à parte inferior (o mais insignificante ministro em cada Estado-membro, ou o último comissário, debitando as mesmas inanidades). Os apparatchiks soviéticos e europeus compartilham a determinação de uma seita cristã em reconhecer factos somente se eles são coerentes com a profecia e os seus textos sagrados. O Sr. Olli Rehn, por exemplo, que é o comissário da União Europeia com responsabilidade sobre assuntos económicos e financeiros, recentemente teve a ousadia de reprovar ao Fundo Monetário Internacional ter apontado erros no cálculo dos multiplicadores fiscais da Zona Euro, porque essa revelação “( …) minava a confiança da população europeia em suas instituições”. Nem mesmo Leonid Brejnev teria ousado fazer uma tal declaração pública!
Com as elites da Europa em estado de profunda negação e desordem, com as suas cabeças enterradas na areia como avestruzes, a esquerda tem de admitir que, simplesmente, não está ainda pronta para cobrir a lacuna que um colapso do capitalismo europeu vai abrir, até ao pleno funcionamento de um sistema socialista, que seja capaz de gerar prosperidade para as massas. A nossa tarefa deve ser dupla: avançar uma análise da situação actual que europeus não-marxistas bem intencionados, até aqui atraídos pelas sirenes do neoliberalismo, achem útil. E acompanhar esta análise sólida com propostas para estabilizar a Europa – para acabar com a espiral descendente que, no final das contas, reforça apenas os fanáticos e incuba o ovo da serpente. Ironicamente, aqueles de nós que detestamos a Zona Euro têm a obrigação moral de a salvar!
Isso é o que estamos a tentar fazer com a nossa ‘Modesta Proposta’ (12). Ao abordar diversas audiências, que vão de ativistas radicais aos gestores de fundos, a idéia é forjar alianças estratégicas mesmo com gente da direita, com quem possamos partilhar um simples interesse: o interesse em terminar a cadeia circular negativa entre austeridade e crise, entre Estados em bancarrota e dorsos derreados de exaustão; uma cadeia circular negativa que prejudica tanto o capitalismo como a qualquer programa progressista visando substituí-lo. É desta forma que eu defendo a minha tentativa de mobilizar para a causa da ‘Modesta Proposta’ pessoas como Bloomberg, jornalistas do New York Times, deputados conservadores ao parlamento britânico, financiadores preocupados com o estado perigoso da Europa.
O leitor vai permitir-me concluir com duas confissões finais. Ao mesmo tempo que estou feliz por defender como genuinamente radical o exercício de uma modesta agenda para a estabilização de um sistema que desprezo, não vou fingir estar entusiasmado com ela. Isto pode ser o que temos de fazer, nas circunstâncias atuais, mas estou triste porque, provavelmente, já não vou estar por perto para ver uma agenda mais radical ser objeto de ponderada decisão. Por último, uma confissão de um carácter estritamente pessoal: sei que corro o risco de, sub-repticiamente, diminuir a tristeza do abandono de qualquer esperança na substituição do capitalismo em minha vida, entregando-me à sensação de me ter tornado “agradável” para os círculos da “sociedade educada”. A sensação de auto-satisfação por ser homenageado pelos fortes e poderosos começou de facto, ocasionalmente, a entrar em mim. E que sensação tão feia, corruptora e corrosivo ela é!
O meu nadir pessoal aconteceu em um aeroporto. Algum organismo endinheirado tinha-me convidado para dar uma palestra sobre a crise europeia e tinha desenbolsado a ridícula soma necessária para me comprar uma passagem de primeira classe. No meu caminho de volta a casa, cansado e já com vários voos sob o meu cinto, eu estava fazendo o meu caminho na longa fila dos passageiros da classe económica, para chegar ao meu portão. De repente notei, com considerável horror, como era fácil para a minha mente infetar-se com a noção de que eu tinha “direito” a contornar a multitude, o hoi polloi. Percebi o quão facilmente poderia esquecer o que a minha mente educada à esquerda sempre soube: que nada consegue reproduzir-se melhor do que um falso sentimento de direito. Concluir alianças com forças reacionárias, como penso que se deve fazer hoje para estabilizar a Europa, faz-nos correr o risco de sermos co-optados, de despejar o nosso radicalismo através do caloroso brilho de se ter “chegado” aos corredores do poder.
Confissões radicais, como as que eu tenho tentado esboçar aqui, são talvez o único antídoto programático para os deslizes ideológicos que ameaçam transformar-nos em peças da máquina. Se estamos prontos a estabelecer alianças com o diabo (por exemplo, com o FMI, com os neoliberais que, apesar disso, colocam objeções àquilo a que eu chamo “bancarrotocracia”, etc. ), devemos evitar tornarmo-nos como os socialistas que falharam a transformação do mundo, mas conseguiram muito bem melhorar… as suas particulares circunstâncias. O truque é evitar o maximalismo revolucionário que, no final, apenas ajuda os neoliberais a ignorar toda a oposição à sua auto-destrutiva grosseria, conservando na nossa mente a fealdade inerente do capitalismo, ao mesmo tempo que tentamos salvá-lo de si próprio, para fins estratégicos. Confissões radicais podem ser úteis para tentar este difícil equilíbrio. Afinal, o humanismo marxista é uma luta constante contra aquilo em que estamos a tornar-nos.
(*) Yanis Varoufakis (n. 1961) é ministro das Finanças do governo grego do Syriza. Seu pai Giorgos Varoufakis combateu pelos comunistas (ELAS) na guerra civil de 1946-49, tornando-se depois um industrial do aço bastante próspero. Yanis foi ativo na juventude do PASOK e estudou Economia por inspiração de Andreas Papandreou. Licenciou-se na Universidade de Essex e, nos anos 1980, ensinou em diversas universidades inglesas, incluindo Cambridge. De 1989 a 2000 ensinou no Departamento de Economia da Universidade de Sidney (Austrália). Regressou então ao seu país, sendo professor de Teoria Económica na Universidade de Atenas. Em 2013 ensinou na Universidade de Austin (Texas, E.U.A.). É o editor grego da revista internacional WDW Review. Chegou a ser conselheiro económico de George Papandreou, mas afastou-se em 2006, tornando-se muito crítico do seu governo. Presentemente faz parte da bancada parlamentar do Syriza mas não é membro do partido. Entre as suas obras mais conhecidas contamos: Rational Conflict.Oxford: Blackwell, 1991; Game Theory: A critical introduction. London e New York: Routledge, 1995 (com Shaun Hargreaves-Heap); Foundations of Economics: A beginner’s companion. London e New York: Routledge, 1998; Modern Political Economics: Making sense of the post-2008 world. London e New York: Routledge, 2011 (com Joseph Halevi and Nicholas J. Theocarakis); The Global Minotaur: America, the True Origins of the Financial Crisis and the Future of the World Economy. Zed Books, 2011; Economic Indeterminacy: A personal encounter with the economists’ most peculiar nemesis. London e New York: Routledge, 2013; Europe after the Minotaur: Greece and the Future of the Global Economy. Zed Books, 2015. Juntamente com a sua mulher, a artista plástica Danae Stratou, produziu a instalação CUT: 7 dividing lines, escrevendo textos sobre a economia política de sete “muros da globalização” (Palestina, Etiópia-Eritreia, Kosovo, Belfast, Chipre, Cachemira e a fronteira E.U.A.-México). O casal fundou ainda o projeto Vital Space. A 14 de Maio de 2013 dirigiu uma comunicação ao 6º Festival Subversivo de Zagreb que, depois de expandida, se transformou neste curioso ensaio. Com ele podemos ter um vislumbre em profundidade dos seus propósitos políticos, expressos com uma rara franqueza, muito acessível a marxistas. O autor representa, claramente, a facção centrista e europeísta a todo o custo no governo do Syriza. Aliás, o seu projeto reformista (a nosso ver completamente utópico) só faz sentido abrangendo o conjunto da União Europeia, como aqui se deixa bem explícito.
A tradução e esta nota são da responsabilidade de Ângelo Novo (http://www.ocomuneiro.com/), a quem agradecemos a autorização para republicação do texto, bem como dos dois seguintes.
BIBLIOGRAFIA
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Marx, K. (1844, 1969). Economic and Philosophical Manuscripts, in Marx/Engels Selected Works, Moscow, USSR: Progress Publishers.
Marx, K. (1849, 1902). “Wage-Labour and Capital”, publicado originalmente em Neue Rheinische Zeitung, 5-8 e 11 de Abril, 1849. [Transmitido como lições em 1847] Editado com uma Introdução por Friedrich Engels em 1891. Traduzido por Harriet E. Lothrop, New York: Labor News Company.
Marx, K. (1972). Capital: Vol. I-III. London: Lawrence and Wishart.
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Varoufakis, Y., J. Halevi and N. Theocarakis (2011). Modern Political Economics: Making sense of the post-2008 world, London and New York: Routledge.
Varoufakis, S. Holland and J. K. Galbraith (2013). A Modest Proposal for Resolving the Euro Crisis, Version 4.0.
NOTAS:
(1) Para exemplos da investigação daí resultante, ver Varoufakis (2013) e Varoufakis, Halevi e Theocarakis (2011).
(2) [NOTA DO EDITOR] Este filme é, na verdade, de 1956, tendo sido exibido no Brasil sob o título “Vampiros de Almas: A Terra em perigo” (em Portugal “Vampiros da Noite: A Terra em perigo”). Foi dirigido por Don Siegel com base na novela de ficção científica The Body Snatchers, de Jack Finney, publicada em 1954.
(3) Ver Karl Marx (1844, 1969), Economic and Philosophical Manuscripts.
(4) Marx em “Wage-Labour and Capital”, publicado originalmente em Neue Rheinische Zeitung, 5-8 e 11 de Abril, 1849. [Transmitido como lições em 1847] Editado com uma Introdução por Friedrich Engels em 1891. Traduzido por Harriet E. Lothrop, New York: Labor News Company.
(5) Ver Karl Marx (1844, 1969), Economic and Philosophical Manuscripts.
(6) Logo no início de Matrix, uma guerrilheira urbana que ajudara o nosso Thomas Anderson, também conhecido como Neo, a fugir dos típicos “agentes”, oferece-lhe uma escolha difícil entre dois comprimidos. Se ele tomar a pílula azul, será devolvido para sua cama e acordará de manhã pensando que a coisa toda foi um pesadelo antes de retomar sua vida “normal”. No entanto, se ele optar pela pílula vermelha, irá aprender a verdade sobre a sua vida e sobre a sociedade. Num triunfo da descuidada curiosidade sobre a sedução dos prazeres simples, Neo recusa a perspetiva da venturosa ignorância oferecida pela pílula azul, optando pela cruel realidade prometida pela vermelha.
(7) Ver Mirowski (2013).
(8) Para mais informações sobre este argumento ver Varoufakis (1991) e Varoufakis (1998).
(9) Ver Marx, “Wages, Prices and Profit”, em que o debate com o cidadão Weston é narrado pelo próprio Marx.
(10) Veja-se o seu ensaio sobre Malthus, “Robert Malthus: The First of the Cambridge Economists”, escrito em 1933, in John Maynard Keynes (1972). The Collected Works of John Maynard Keynes, Vol. X: Essays in Biography, London: Macmillan. A citação aparece nas pp. 100-1. Originalmente publicado em Essays in Biography, 1933.
(11) Malthus fez o seu nome com o prognóstico de que o crescimento demográfico ultrapassaria sempre os recursos da Terra, maugrado os nossos melhores esforços, e que, por conseguinte, a fome era um mecanismo “equilibrante” imperativo. Como homem de sotaina, ele explicou isto como parte do desígnio de Deus: o sofrimento das massas, as barrigas inchadas das crianças inebriadas, as faces de esgotamento do processo de luto das mães, tudo foram oportunidades divinamente concedidas para os seres humanos abraçarem o bem e lutarem contra o mal.
(12) Ver Y. Varoufakis, S. Holland e J. K. Galbraith (2013). A Modest Proposal for Resolving the Euro Crisis, Versão 4.0.