O caso BES: agência, estrutura e luta de classes

Artigo de Eugénia Pires.


Muito se tem falado do caso BES, esse tufão que assolou a debilitada economia portuguesa. Uns pedem que a justiça se cumpra e Ricardo Salgado pague pelos seus crimes. Outros argumentam que as culpas também devem ser atribuídas aos supervisores pela tardia e incompetente intervenção. Outros ainda que se trata de um problema político que privilegia os economicamente poderosos. Sem deixarem de ter razão, nota-se, porém, que o funcionamento do sistema financeiro quase nunca é invocado como estando na origem do problema.

Nos últimos anos assistiu-se à crescente financeirização da economia e à transformação da banca. Esta deixou as tradicionais áreas de fornecimento de crédito ao sector produtivo especializando-se na intermediação de grandes operações nos mercados internacionais de capitais e no crédito a particulares, os quais se foram crescentemente endividando para suprirem necessidade básicas, como a habitação. O BES acompanhou esta evolução e a sua história reflecte o lado perverso do livre funcionamento do sistema financeiro.

Para contrariar uma análise excessivamente centrada em actuações ilegais ou incompetentes, há que recentrar o debate na dicotomia agência-estrutura. Enquanto que o primeiro conceito se refere à actuação dos agentes económicos, o segundo alarga o espectro da análise e foca-se no contexto socio-económico e político-institucional em que essas decisões são implementadas.

A agência

Os indícios de prácticas menos lícitas abundam neste caso. A sucessiva manipulação das contas da Espírito Santo Internacional (ESI) entre 2008 e 2013, culminando no encobrimento de um buraco de €1300m através da sobrevalorização de activos sugere falsificação de contas., enquanto o financiamento em cadeia das empresas participadas às holdings do grupo e a promoção da desproporcionada exposição à dívida do grupo por parte dos clientes do BES,  incluído os clientes de retalho, sugere gestão danosa .

Torna-se cada vez mais evidente que perante a ausência de lucros, o pagamento de dividendos aos accionistas foi assegurado através da emissão de dívida. Porém, a crise internacional tornou o acesso aos mercados de capitais mais difícil, a supervisão prudencial intensificou-se e as perdas começaram a ser mais óbvias. É neste contexto que as holdings do grupo começaram a desfazer-se de activos e a recorrer a fontes de financiamento dentro do grupo.

Providencialmente o BES apresentou a dupla função de fornecer crédito e intermediar a colocação de dívida junto dos seu clientes. Em seis meses, entre Dezembro de 2013 e Junho de 2014, a exposição do BES ao Grupo Espírito Santo (GES) duplicou, de €700m para €1571m. O crédito à Rioforte e à ESFG, em particular às suas sub-holdings, a ESFIL e o BES Panamá, triplicou. Como se tratava de crédito entre filiadas, muito dele não seguiu as melhores prácticas tendo sido concedido sem que se verificasse a recepção simultânea do colateral. A ESCOM também deu o seu contributo nesta história. Enquanto o seu pagamento tarda, os créditos acumulam-se.

Contrariando todas as regras da boa gestão prudencial, a carteira de clientes do BES foi ainda colocada ao serviço do grupo. As contas semestrais mostram que a dívida GES com custódia no BES duplicou entre Março e Junho, ascendendo, no final de Junho, a €3107m. Deste valor, um terço era detido pelo retalho. Há algum tempo que se verificava esta práctica. Primeiro, através do fundo ES Liquidez que cresceu de €476m, em 2011, para €2230m, em Agosto de 2013. A forte concentração de risco no grupo (mais de 83%) mereceu uma advertência por parte da CMVM, levando-a posteriormente a limitar a 20% o investimento máximo dos fundos em empresas filiadas permitido por lei. Neste contexto, a única alternativa passou a ser a venda de dívida directamente ao retalho. Porém, alguma da sua origem é camuflada através de entidades especiais (SPEs) sediadas em paraísos fiscais.

O canal BES serviu ainda para colocar dívida da Rioforte e da ESI junto de institucionais. Para isso serviu a política de participações cruzadas e, subsequente, ajuda mútua entre a Portugal Telecom e o GES, onde este detem uma participação de 10.5%. Uma práctica antiga com “investimentos” que que variaram entre €250 e 500m até 2012, 750m de dívida do ESI em 2013 e a polémica subscrição de €897m em papel comercial da Rioforte em 2014. No caso da Tranquilidade, depois desta seguradora ter sido entregue como garantia, foram ainda subscritos  €135m em papel comercial da casa-mãe (ESFG) e da Espírito Santo Financeira (ESFIL) e depositados €15m na ESI.

Com o agudizar da situação sucedem-se ainda:

  •  o favorecimento de credores através do reembolso antecipado de dívida, recompra de créditos e emissão de garantias (€1500m) em Julho, já após a intervenção do banco central;
  •  a sobreavaliação de activos imobiliários, como no caso da seguradora Tranquilidade que foi entregue como garantia à linha de crédito que assegurava o pagamento do papel comercial da ESI e Rioforte colocado no retalho valendo €700m, quando o seu líquido da dívida incobrável ronda €50m a 150m; e
  •  a prestação de informação falsa ao mercado em múltiplas situações, de que o mais grave é diz respeito aos prospectos do aumento de capital concretizado em Junho que contou com o aval dos supervisores – Banco de Portugal e CMVM, e do sindicato de bancos que liderou a operação.

Uma abordagem  fortemente concentrada na actuação individual dos agentes económicos tende a reduzir este caso a uma manifestação de risco moral, fruto dos incentivos perversos à actuação das instituições financeiras, e a apontar como solução a indiciação judicial dos seus responsáveis e a acusar os supervisores de falta de competência. Apenas o funcionamento do sistema financeiro aparece sempre inquestionável, dado que de uma forma geral se verificam as prescrições básicas: transparência, disseminação alargada de informação e a presença do supervisor.

A estrutura

A actuação dos agentes económicos não acontece, porém, num vácuo, ela é contextualizada. O que resulta óbvio no caso BES é como a criação de um grupo financeiro que explora as oportunidade que o enquadramento legal e institucional lhe permitem tem tão desmesurado potencial de destruição de valor. Os acontecimento do último ano e meio são eco disso.

Sem querer desresponsabilizar qualquer actuação fraudulenta, sugere-se uma análise alternativa, mais focada no funcionamento do sistema financeiro. A crise financeira iniciada em 2007 expôs o regime de excepção porque se pauta o sistema financeiro. Este beneficia do melhor dos dois mundos: tem os seus lucros garantidos quando tudo corre bem e a segurança de que se algo correr mal as suas perdas serão socializadas dada o seu papel central para a economia. Não obstante o alarme da crise iniciada em 2007, as reformas para conter a volatilidade financeira intrínseca ao ‘normal’ funcionamento do sistema, essas, continuam a tardar.

Sabemos que o GES é composto por um encadeamento de empresas, umas cotadas em bolsa e outra não, as quais exercem a sua actividade em múltiplas jurisdições estando, por isso, sujeitas a distintos regimes fiscais e regulatórios e a diferentes graus de supervisão pelas autoridades competentes. A análise das contas recentes mostra também quão rápida é a compra e venda de participações, a alteração da sua personalidade jurídica ou mesmo de toda a estrutura do grupo. Mais ainda, mostra que actuações agora consideradas de abuso da lei foram situações conformes à mesma durante muito tempo, veja-se o caso da contabilização dos activos com “prémio de controlo” ou a venda de dívida a clientes do BES. Em suma, parece que toda esta complexa e opaca estrutura multinacional foi legalmente criada com o propósito de fugir aos impostos e ao controlo do regulador já que não é de todo necessária para a realização de operações no mercado externo.

Outro aspecto essencial nesta história tem que ver com o facto da expansão do grupo ter tirado partido do estatuto de reserva de valor do Euro sendo o reflexo último da livre circulação de capitais. Este contexto tem contribuído para o sobreendividamento das empresas, sustentando fluxos especulativos que tiram partido da opacidade criada pelos paraísos fiscais e gerando uma redistribuição perversa do rendimento ao evitar o pagamento de impostos na morada de residência dos beneficiários últimos.

A livre circulação de capitais é ainda reflexo de uma outra contradição perigosa. Apesar dos mercados de capitais se encontrarem integrados, permitindo ao emitente nacional lançar dívida ou investir noutras jurisdições, a sua supervisão está fragmentada, limitando a actuação do supervisor. O risco é nacional porque persistem as fronteiras nos mecanismos de resgate cujo custo, não obstante os artificialismos criados, tende a cair sobre o contribuinte residente. Apesar do esforço de uma política de supervisão comum existem muitos entraves à sua concretização. Por exemplo, a directiva comum de resolução bancária não aborta esta contradição da zona euro, reservando-lhe apenas a coordenação comum do processo. Os fundos de resolução continuam a ter dimensão nacional. Como o caso do Novo Banco demonstra, o custo é imputado ao sistema bancário nacional.

A apologia da livre circulação de capitais levou também à generalização das operações ao balcão (over-the-counter). Embora mais baratas por se realizarem fora de bolsa, elas são também mais opacas, e por isso mais propensas a engenharia financeira perversa porque não exigem registo dos termos e condições nem estão sujeitas a mecanismos de compensação que minimizem perdas.  A venda de obrigações estruturadas através dos SPE’s ou a cedência de crédito descolateralizado entre filiadas reflecte este factor estrutural.

Outro aspecto prende-se com a integração entre banca comercial e banca de investimento, cujos riscos se tornaram mais evidentes com a crise. Este aspecto fomenta, para além do incentivo ao crédito induzido pela titularização de dívida, a venda de dívida junto dos pequenos aforradores, podendo ser perversamente utilizado para a colocação de dívida própria, como no caso do ES Liquidez e das obrigações dos SPEs. Como é sabido, estas aplicações não estão cobertas pelo fundo de garantia de depósitos e os pequenos aforradores tendem a tomar as suas decisões influenciados pela relação de confiança com o gestor de conta.

Por último importa abordar o papel do Estado, que tem estado confinado a um papel de passividade, quer como regulador e supervisor ou mesmo quando se requer o resgate público da banca. Enquanto regulador, a sua actuação limita-se à criação do ambiente em que a iniciativa privada funcionará. Enquanto supervisor, a sua actuação é limitada pelas fronteiras geográficas, e tardia pois não tem intervenção directa na tomada de decisão sendo os actos comunicados à posteriori. O caso BES ilustra bem esses limites apesar dos esforcos: a tentativa de blindar o BES das dificuldade financeiras do GES foi tardia; a prestação de garantias para proteger o retalho foi viciada; e o acesso a informação ou o poder de intervenção noutras jurisdições, como com o BES Angola está-lhe vedado. Não deixa de ter, porém, alguma responsabilidade por ter dado o seu aval ao aumento de capital realizado em Maio quando já tinha conhecimento da situação, quiçá se por ter errado no julgamento da sua gravidade ou por não esperar uma actuação tão drástica por parte do BCE.

O papel de agente activo nas questões financeiras está-lhe vedado por se assumir que o poder desmesurado que tem limita o potencial de lucro dos privados. Contrariamente à apregoada eficiência deste sector, a passividade do Estado tem elevados custos para o individuo, enquanto consumidor e enquanto contribuinte fruto. Tudo seria diferente se o regulador não abdicasse do poder de exercer  repressão financeira fixando os preços e as quantidade dos serviços monetários  e do crédito, ou se atribuísse um papel disciplinador do mercado ao banco público. Apenas quando as coisas correm mal se aceita que o estado tenha um papel mais activo, ainda assim apenas como accionista passivo ou emprestador de último recurso, mas apenas para a banca dado que o acesso do banco central ao mercado primário de dívida pública está vedado.

O caso BES demonstra que mesmo em situações extremas que recomendariam uma intervenção pública radical continua a ser tabu falar em nacionalizar, optando-se por soluções artificiais sem que se evite, contudo, a intervenção de fundos públicos. Desta vez perdeu-se a oportunidade para realizar uma resolução bancária sistémica à banca nacional que reduzisse os passivos da banca e subsequente recapitalização com fundos públicos e que redirecionasse a banca portuguesa para o cumprimento da sua missão, fornecimento de crédito ao sector produtivo.  A separação entre “banco bom” e “banco mau” segue uma solução subserviente às vontades externas, que protege os investidores futuros,  desta vez à custa dos accionistas e credores subordinados, e veremos se mais uma vez privilegia as relações de política externa com Angola.  O Novo Banco, o banco intercalar que resulta depois dos activos tóxicos terem sido removidos, destina-se a ser vendido em breve, resta saber se isso significa a qualquer preço. Não importa que esta solução implique o desperdício de uma das maiores mais-valias da marca BES, a relação de confiança criada junto dos clientes da banca comercial, especialmente junto das pequenas e médias empresas; ou o imputar indiscriminado de perdas que não acautelam os pequenos accionistas.

Note-se que ao evitar a recapitalização directa, não se reduz o risco para o contribuinte. O empréstimo público sem garantias concedido ao Fundo de Recapitalização da Banca depende da capacidade da banca de gerar esses fundos em tempo útil, o que não se afigura como muito provável. Caso a venda do Novo Banco se realize com perdas, estas terão de ser suportadas pela banca, entre eles a CGD, o banco com a maior quota de mercado. Dado o risco sistémico que tal opção implica não é de descartar a possibilidade desta ser apenas mais uma forma de socialização das perdas privadas da banca.

A luta de classes

Em jeito de conclusão apenas um comentário sobre a nova forma de socialismo que se instalou após a crise de 2007. Os poderes públicos deixaram de ser mobilizados para apoiar os mais desfavorecidos ou para alargar, em qualidade e quantidade, o cabaz de serviços sociais mínimos a todos por igual. Eles estão agora a ser mobilizados para apoiar os que detém maior poder económico – a banca e os banqueiros. Esta é apenas a mais recente faceta da financeirização da economia, também presente no desfecho do BES.

A crescente financeirização tem o seu responsável último no BCE e na política monetária ‘independente’ a qual impede a criação de moeda para financiar a despesa pública, o mais poderoso instrumento de política económica, e limita o seu mandato à estabilidade dos preços. Acontece que este compromisso é tudo menos uma escolha independente.

Esta escolha reflecte um compromisso em promover um crescimento moderado do valor dos activos financeiros, uma opção que toma o partido dos credores. Ela tem consequências duplamente catastróficas para a vida quotidiana. Por um lado, penaliza os devedores, entre eles os trabalhadores. Por outro,  ignora o impacto da política monetária sobre os preços dos próprios activos financeiros os quais crescem desmesuradamente induzidos por bolhas especulativa. Acontece, porém, que cada vez mais produtos fundamentais à sobrevivência humana, como o imobiliário e as matérias primas, estão a ser alvos de aplicações financeiras e sujeitos a grande volatilidade no preço, daí a crescente mobilização da banca em sectores não financeiros como no caso da Rioforte.

É precisamente no formato que toma a política monetária implementada pelo BCE, que tão grandes implicações tem no dia-a-dia, que está expressa a luta de classes que opõem trabalho ao capital. O BCE não presta contas aos governos, os seus elementos não estão sujeitos ao escrutínio eleitoral nem são escolhidos por forma a representar os múltiplos interesses sociais. Muito pelo contrário, para além da agenda sobre a estabilidade dos preços, esta instituição pública é dirigida por elementos com fortes ligações ao sistema financeiro. Porém, tem um desmesurado poder económico e político. Como é óbvio, não havendo influência governativa, não deveriam as suas preocupações ser sobre o nível de emprego e de crescimento do PIB e tornar a reforma do sistema financeiro como a sua prioridade?


Artigo publicado no Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) – Setembro de 2014